Instantâneos
 
     Desliza o corpo, recruta que se arrasta abraçado ao fuzil. Sustenta-se. Conhece os efeitos da queda. A necessidade se contrapõe, o estômago desafia. A pele se mistura aos tons dos galhos e folhas enquanto busca os olhos entreabertos do oponente que talvez finja dormir.
     Alheio ao perigo, o sol, criança que desperta em dia de aniversário, ilumina a manhã.
     Aproveita o sonambulismo da presa e se ajusta, estaciona frente a frente. Às vezes, demora.  A troca de olhares hipnóticos precede o golpe, assegura a refeição e menos sofrimento à vítima, embora isso pouco lhe importe.
     Por noites, estendera o lençol sobre o colchão de ar. Em forma de círculo, bordado em rendas, cada linha parte do centro, se alonga e se prende aos ramos, sendo entrecortado por outros fios perpendiculares, distribuídos em espaços que se estreitam quanto mais próximos do eixo.
     Num piscar de olhos, a fome, o repouso, a reprodução da vida se rompem em breve desordem. A natureza vence.
*
     Horas antes, os ventos de setembro empurravam as ondas à quebrada na praia que ainda sob o edredom da noite se protegia do frio. Sobre a areia úmida, um vulto se arrasta. Para, recupera o fôlego, cava um buraco na terra fofa, deita em cova rasa os sucessores e cobre com o entulho da escavação. Missão cumprida, aliviado do peso, inicia a corrida de volta ao berço doméstico.
     São as águas de março na visão do poeta. O brotar da vida no casco daquelas pequenas criaturas que, em afoita correria, seguem ao encontro do lar, parentes e amigos. Não estão sós. Do alto, a vigília de olhos agudos, garras e bicos afiados arrebatam a maioria ao céu, anjos e selos de salvaguarda e supremacia da natureza.
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     Na planície, o rebanho apara a relva de tonalidade múltipla. Parecem distraídos. Focinhos próximos ao chão e contra o vento aguardam a bandeira de largada. O alerta vem no odor do perigo. Velocidade e fuga estão nos mandamentos da salvação. A lei é suprema, sem tribunais, promotores, juízes e advogados. Testemunhas e vítimas somos nós.
     Em instantâneos e filmes o olho de vidro captura os fragmentos. A natureza conduz a espada, vigia e pune. Eles conhecem o significado de força e justiça. Sem voz se obrigam, consentem. Os mais fracos perecem.
     Correm à exaustão. O líder para, mastro central da lona do circo da morte. Por limite de forças, dos mais fortes aos fracos se aglutinam ao redor, assim os anéis se formam, deixando à borda o alimento para os grandes predadores, sobejo para hienas e abutres.
     – Caramba! Igual às criaturas: ricos, pobres e miseráveis.
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    Uma senhora abre a janela, deposita o rosto magro ao centro. Deixa o olhar se derramar sobre... sabe-se lá o que. Uma lágrima órfã desenha curvas na face enrugada.
     – Vista a roupa de passeio.

     Camisa vermelha, bermuda jeans e tênis usados sempre aos domingos ou feriados em raras saídas          
      – Mãe, aonde vamos?

      – Encontrar a liberdade, filho.
     Embarcam com desconhecidos. Carregam quase nada. A roupa do corpo, a mochila com alimentos e água. Na cabeça, sonhos do tamanho do mundo. O que deixam para trás e o brilho da esperança a impedem de considerar as condições do barco, o propósito dos barqueiros, o abismo e a recusa do mar de outras praças.
     Na areia de uma praia distante no acalanto do fino lençol de ondas salgadas em um país no qual cabiam os sonhos daquela mulher, repousa o corpo inerte do filho em traje passeio, purga do mundo. O homem moderno contesta a vitória que a natureza rejeita. O menino alcançou a suprema ventura, a alforria que a mãe lhe prometera.
     *
     – Vamos, se apresse. O patrão reclama quando me atraso.
     – Chame o pequeno.
     – Você é a mãe. Perdeu a carona, lhe deixo no ponto do ônibus.
     Coloca o menino no banco de traz, abre o portão, o veículo avança e para adiante sobre a calçada. Ela fecha o cadeado, ocupa o banco do carona. Assemelham-se a uma família de classe média com endereço, vizinhos, automóvel e filho na escola. Partem.
     Ele desconhece o rastreador por satélite que a polícia instalou no carro, a distribuição de agentes nos locais de trabalho, que parte da sua existência nos últimos dias está gravada em nuvens de dados, computadores e pen drives, que a profissão não ocupa as leis trabalhistas e a quem intitula patrão, apropriado seria chefe.
     Manhã de sol encoberto num centro de compras por atacado. Zunido de balas, sirenes, gritos, correria, gente pisoteada de cara no chão. Uma viatura recolhe o corpo de um homem. No varejo, comentários ao pé de ouvido baldeiam a farsa: era um cidadão, pai, chefe de família em luta pela sobrevivência. Uma criança reclama a perda da carona para casa e pergunta sobre a volta do pai. A natureza e a mãe perdem a voz. A polícia proclama o mérito.
*
     Em mais um país, a espada de um ditador se ergue, aliada às forças brutas armadas, olhos atentos à partilha do saque. Prometem igualdade, divisão do nada em partes iguais entre o povo e desse se excluem. Raios que vem de longe, falsas vozes antagônicas de carrascos que empurram o ar da miséria e fome, trovoada de estômagos vazios.  A carência de saberes, a procura por um deus qualquer, a desorganização e o medo toldam o formigueiro. As criaturas cumprem a fábula, explodir o peito de trabalhar ou cantar.
     Escorregam, rolam ladeira abaixo e sob ela tem a sepultura. De joelhos, sobem morros em procissão, pagam promessas aos que as deixaram na caverna e não mais voltaram para lhes mostrar a saída ou explicar a alegoria.
     Ocupam mangues, palafitas, se alimentam de siris, mariscos retirados da lama e recompensam os mosquitos com o próprio sangue. Consolam-se na palavra dos pastores que lhes tomam o salário, na cultura da TV, no chope, no futebol e no carnaval, os alimentos da alma pagã.
     No deserto vestem a roupa do demônio, explodem gente justificando atender ao apelo divino e enfrentamento ao ocidente. As graúdas saúvas acumulam riquezas, movem rede de aliados; igrejas, governos fantoches, generais marionetes de armas em punho.
     Sobre todos, dezenas de bombas atômicas; ameaça dos donos da terra possuidores de programa de milhagem para outro planeta, se houver tempo e a natureza permitir.
*
     Por intuito esmago uma barata que passeava na sala. Imagine, andar livre nesses dias. Não está morta, lhe estourei a gordura por necessidade de combate e companhia para o monólogo enquanto navego as histórias desse incompreensível mundo de tantos tamanduás e formigas. O cristalino, o olho de vidro, o tripé são as ferramentas mas refiro-me a terceira perna, a que me impulsiona, leva adiante e me converte protagonista e testemunha quando arrebatado à cena ou açoitado à fuga.
     Não julgo, me importa o melhor ângulo, a imagem, o trabalho. Afinal, a dor é volátil e produto humano, perfume barato ao alcance de todos.
     – Desculpe, se cuide, espero lhe encontrar viva. A rotina me chama.
     Demora a morrer, dizem que resistem à radiação nuclear.
     – Virou moda, a posse de presidente porra-louca!