Não sou paga para isso

- Anne, você fala francês.

O Sr. Amodeo, gerente geral do escritório de projetos arquitetônicos onde eu trabalhava, em Milão, mandara me chamar ao seu gabinete, o que era uma surpresa, visto ser eu uma funcionária de terceiro escalão. E fizera uma declaração, não uma pergunta sobre minha aptidão linguística.

- Sim, senhor. Minha mãe é francesa - repliquei.

- Bem, Anne, vou precisar da sua ajuda - declarou. - Na segunda-feira, estaremos recebendo dois representantes de um novo cliente, para conhecer nossas instalações. São franceses, não falam italiano nem inglês.

- Não vejo qual seria o problema, senhor - avaliei. - A sua secretária é poliglota, se não me engano, e fala francês fluentemente.

- Verdade - admitiu o gerente geral. - Mas, infelizmente, ela terá que se ausentar da cidade na próxima semana; não estará disponível para recepcionar os clientes.

- É uma lástima, Sr. Amodeo. Mas o que eu tenho a ver com isso?

- Veja... você não poderia nos servir como intérprete, nesta reunião?

- Não - retruquei.

- Por que não? - Indagou ele, sobrolhos erguidos.

- Sr. Amodeo, eu não fui contratada como intérprete, mas como desenhista técnica de nível médio, embora tenha experiência até para liderar uma equipe de projetistas. Não vou fazer gratuitamente o trabalho de uma pessoa que ganha muito mais do que eu, apenas porque, convenientemente, é o meu segundo idioma.

Ele me encarou, estarrecido.

- Bem, Anne, estamos a par da sua competência. E esperávamos que pudesse nos demonstrar estar à altura de novos desafios aceitando esta incumbência, que pouco irá lhe exigir em termos técnicos.

- Realmente, este não é um desafio à altura da minha capacidade - assenti com um sorriso irônico. - Mas, parece que para vocês é um caso de vida ou morte. Digamos que eu aceite fazer o favor: me dariam um cargo compatível com a minha capacidade, que é a de projetista?

- Você tem formação para isto? - Questionou.

- Formação e experiência - repliquei.

O Sr. Amodeo ficou me encarando, por alguns instantes. Finalmente, fez um gesto afirmativo de cabeça.

- Está bem. Temos um acordo.

Continuei em silêncio.

- Não vai dizer nada? - Perguntou finalmente.

- Estou esperando o senhor ligar para o gerente de RH e comunicar que tenho um novo cargo - retruquei.

O gerente geral bufou. Mas pegou o interfone e fez a ligação.

- [04-03-2020]