Esperanças despedaçadas
As crianças têm sua inocência em tão alta conta, que, só aos adultos é confiado o privilégio de observá-las.
Um balde tem, por muitas vezes, a função de armazenar ou transportar líquidos. Mas este balde em questão um dia chegou a ser utilizado para carregar o líquido mais preciso e sagrado aos seres vivos.
Minha família tinha uma enorme amizade pelos vizinhos que moravam na frente da nossa casa. Eu contava 5 anos, sem experiência alguma de vida e dos dramas humanos.
Houve uma vez que estávamos minha mãe e eu na casa da vizinha; desse dia não me recordo de nada além daquela frase que trago até hoje comigo. Mais uma vez repito: crianças são inocentes.
Não sei quantos dias se passaram desde que escutara a conversa dos adultos na vizinha. Minha avó e uma tia avó, como haviam crescido na roça, tinham certos costumes e, sempre que tinham a chance, adoravam fazer algo que lhes remetia ao passado. Passado onde podiam ver, conversar e abraçar seus entes mais queridos: pais e irmãos que jaziam em seus lares derradeiros.
O feitio da vez era chouriço. Quem conhece da arte de fazer chouriço, sabe que o verdadeiro chouriço é feito com sangue e intestino de porco como principais ingredientes.
Não muito longe de onde eu morava havia um matadouro de porcos. No matadouro poderiam ser comprados todos os tipos de miúdos e tinha a opção, e essa era de graça, de poder levar para casa sangue e tripas de porco.
Foi combinado entre minha avó e minha tia irem, as duas, no matadouro pegar sangue e tripa. Não sei como ou quando surgiu o convite para eu ir junto, sei que fui com elas.
O acesso ao matadouro era composto de dois caminhos: longo e curto; estrada e mato. Nunca fui pelo mais longo; nunca tive pensamentos de curiosidade para com ele. O mato tomava toda a minha atenção. Era como se estivéssemos desbravando lugares inexplorados. Para mim era tudo novo. Em certa altura do caminho surgia um trilho de trem. Era ali que eu via, da minha casa, passar um fio fino de vagões deixando um espesso rastro de fumaça. Andamos pelos trilhos até chegar ao matadouro. Aquele andar nos trilhos me provocou a melhor das sensações. Pensava o que aconteceria se, durante a nossa curta caminhada, acontecesse de o trem passar por ali. Tenho certeza que poder ver aquele trem, que até então só tinha avistado de longe, poderia ter imprimido em mim uma lembrança que encobriria essa que, não sem esforço, relato aqui.
Na volta para casa, elas aproveitavam uma bica de água que tinha em certa altura no caminho que fazíamos nos trilhos. Boa parte da sujeira das tripas ficavam naquela bica. Seria tão bom se toda a sujeira da humanidade pudesse ser limpa dessa forma... Mas quem sou eu para falar em sujeira? E quem pode nos falar? peço desculpas ao leitor pelo devaneio, mas a filosofia está em mim como um dia aquelas tripas e sangue estiveram nos porcos.
Depois de terem tirado a parte maior da sujeira daquelas tripas, o caminho de casa foi retomado. minha maior decepção foi não ver aquele trem. Ah, trem! Tem trem? Não trem!
Aquele caminhar suave dos meus pés, calçados naquele chinelo havaianas sola azul, nos trilhos... Trem, por alguns metros andei a me equilibrar no que lhe proporciona movimento!
Minha esperança se fez na possibilidade de ver o trem na próxima vez que fossemos no matadouro. Mal sabia eu, que, depois de sairmos dos trilhos e termos retomado o caminho no mato, minha língua iria sepultar minhas esperanças em cova rasa.
Por que aquela conversa entre minha avó e tia foi não profundamente gravada em minha memória?
E agora, depois de ter me arrastado por linhas e linhas acima, exausto pois a culpa e a vergonha são um pesado fardo para se carregar. Vocês poderão enfim saber o que aconteceu.
A vizinha não tinha lá um pavio muito grande, e vou eu lá na casa dela e conto que a minha tia avó falou que ela, a vizinha, estava com um balde seu há muito tempo, e considerava quele balde perdido. No exato momento que a última sílaba me escapou dos pequenos pulmões, vi a vizinha se levantar, ir até a lavanderia, pegar um balde e sair para a rua. Andou até chegar em frente à casa da minha tia avó e fez aquele balde em mil pedaços, enquanto gritava palavras nada apropriadas os ouvidos de uma alma inocente. Adeus trem!