O CONFINAMENTO (Ou Isolamento Social)

Era uma tarde de domingo e D. Tudinha, estatelada no sofá da sala, assistia um vídeo do Youtube através de um notebook acoplado ao televisor. Guga, obediente às ordens governamentais, quanto ao isolamento de idosos, organizou a casa para que a mãe pudesse gozar de algum tipo de conforto nos dias vindouros, sozinha, com Deus e seus temores... Após ensinar à mãe como ligar a aparelhagem, para amenizar a solidão entrante, deu mais um giro de inspeção no ambiente e partiu para a casa da irmã casada, onde viveria em desejada segurança ao mesmo tempo em que, à distância, preservaria a saúde da mãe idosa.

D. Gertrudes, desde criança, recebera o carinhoso apelido de Tudinha, em razão de que a parentada entendera que o nome escolhido pelo pai, Astrogildo, não emplacava muito bem na onomástica daqueles dias. De qualquer forma, o apelido pegou, a menina cresceu e, agora, era uma senhora de idade avançada carecendo dos cuidados comuns a gente dessa faixa etária.

A despedida de Guga, para a mãe, foi dolorosa uma vez que nunca houvera sido exposta a tal situação, repentinamente isolada do convívio pessoal com os demais membros a família e, em especial, com o casal de netos e seu filho mais novo que com ela conviviam no apartamento.

Após enxugar as lágrimas tomou, da garrafa térmica, uma xícara de café e foi para diante do televisor resolvida a espantar a tristeza e o sofrimento que com ela ganhavam espaço.

Não demorou muito para sentir-se entediada com a enxurrada de anúncios que, aos berros, executavam ginásticas vocais no sentido de empurrar para dentro dos espectadores o veio mandatório da propaganda, para compras, mesmo que desnecessárias.

Ligue agora! Compre já! Não perca tempo! Você não pode perder! Faça o seu! Pague em dez vezes! Não deixe para depois! Não bastasse essa encheção de saco ainda vociferavam, o mais rápido que podiam, dentro de um tempo exíguo para tantas palavras... Um verdadeiro inferno, aquilo, pensou a mulher.

Entediada, manipulando o controle manual do aparelho, zapeava os canais passando a vista no que estavam transmitindo. Não demorou muito tempo para perceber o quanto de manipulação há na mídia que, cobrando mensalidades, além dos canais especiais da TV a Cabo também cobram pela sintonia dos canais abertos gratuitos e à disposição de qualquer um.

Na medida em que subia na escala deparava-se com vários canais com "Chefs" ensinando a cozinhar chuchu, transmissão da final do Campeonato do Akinenstão com os times do Katakazu x Mankutokov. Mais para cima, jogos de tênis, futebol, golfe, sinuca, futebol, skatismo, pescaria, futebol, patinação, box, futebol, remo, patinação, futebol, montanhismo, surf, futebol, luta livre e, para variar, comentaristas de futebol falando à bandeiras despregadas como se estivessem tratando das coisas mais importantes do mundo! Liderando a falação, com gestos, caras e bocas, Galvão Bueno, de olhos esbugalhados, fazia a festa...

Insistindo em pressionar os botões do controle, D. Tudinha acertou canais em que “apresentadores” faziam fofoca a respeito da vida de “celebridades”, devassando a intimidade das figuras, suas preferências sexuais, vida conjugal, etc... Mais para adiante, outra dupla comentava sobre o bumbum rebolante da Anitta e do fio dental que sumia no traseiro de outra figuraça do "jet-set" das "ce-le-bri-da-des"...

Desinteressada do que estava vendo, prosseguiu zapeando e foram desfilando diante dos seus olhos, cenas de reprises de programas de auditório, humorísticos, fofocagem, novelas, etc... etc...

Mais adiante, noticiários sobre o coronavírus desenhando o mais tétrico cenário. A cada canal, apresentadores se arvoravam em arautos do apocalipse verberando desgraças sobre o país e o mundo. Infecções aos zilhões, mortes aos milhares, tendências catastróficas para os dias vindouros e tudo, por culpa dos governantes de plantão...

D. Tudinha, desconsolada com o que via, num gesto de desprezo, apertou o botão vermelho do conversor da TV a Cabo e, com o mouse passou a buscar algo de interessante no que o notebook poderia mostrar, da Internet. Talvez, algum filme romântico, alguma história de amor, quem sabe?

Ao abrir-se a tela, várias quadrículas apresentavam cenas e breves comentários a respeito do conteúdo pronto para ser exibido. Foi então, que viu uma cena que chamou sua atenção. Era sobre o filme protagonizado por Richard Gere e Julia Roberts, “Uma Linda Mulher”. Na indicação, o filme seria exibido completo, dublado e gratuitamente.

D. Tudinha não vacilou! Tal qual foi orientada por Guga, cuidou de dar tratos à bola, executou os comandos e ajeitou-se para assistir o filme escolhido. Não demorou nada para que se envolvesse em uma formidável decepção. Apesar do anúncio de gratuidade, a página acessada era transferida para outra que limitava o acesso ao pagamento de uma importância que facultaria, inclusive, o 'download'.

D. Tudinha, cansada e aborrecida, apertou o botão vermelho do comando e desligou toda a parafernália. Levantou-se do sofá, deu uma olhada no quarto vazio sem saber quando Guga voltaria para ocupá-lo. Em seguida, tomou alguns comprimidos de "Rivotril" e deitou-se para dormir.

Antes de pegar no sono, ficou pensando no que ouvira de uma amiga ex-professora de Sociologia, entendida nessas coisas de política, ideologia etc... Segundo ela, estaria sendo posto em andamento um plano para eliminação de boa parte da humanidade, cerca de oitenta por cento, e isso poderia ser pesquisado sob o título de “Despopulação Mundial”. Segundo sua amiga havia até mesmo caixões armazenados sob os auspícios de uma organização denominada FEMA. Idosos, enfermos e miseráveis estariam na linha de frente desse tipo de ação que seria global...

Com esse tipo de lembrança, D. Tudinha deitou-se e adormeceu...

Na manhã seguinte o telefone celular tocava insistentemente. Era Guga que queria saber se a mãe iria querer pão ou bolo para o desjejum. O telefone não foi atendido. Nem pão, nem bolo. D. Tudinha morreu em paz, dormindo, e não viu nada do que sua amiga lhe disse que estava por acontecer. Morreu isolada, sem infecção e sem sinais do coronavírus. De solidão e desencantamento, talvez...

Na segunda-feira, na TV, o noticiário formador da opinião pública, com a apresentadora de olhos arregalados, contorcida em caretas e ginástica vocal, dava conta de que mais outra vítima do coronavírus havia morrido, na cidade, e que os moradores do prédio estavam exigindo do síndico, imediata descontaminação...

Para D. Tudinha a reclusão social pode ter sido o passaporte para libertar-se do futuro incerto que está sendo construído para uma humanidade mascarada que nem entende que já perdeu até o direito natural daquele antigo e maravilhoso beijo na bôca!

Amelius

29/03/2020

Amelius
Enviado por Amelius em 29/03/2020
Reeditado em 10/10/2021
Código do texto: T6900143
Classificação de conteúdo: seguro