Conto das terças-feiras – Minhas janelas
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 24 de março de 2020
Moro hoje em um edifício residencial de 21 andares. O meu apartamento fica no primeiro andar, são dois por andar. Pensava que seria vantajoso morar nessa condição, quando faltasse energia não teria que subir muitos degraus de escada. Foi a única vantagem, porque desvantagem tem muitas.
Esclarecendo, sou a segunda portaria do edifício, já que uma das janelas do apartamento fica atrás da guarita, isto é, do portão principal. Moradores, empregados, familiares, visitantes, todos têm acesso ao prédio por esse portão, a exceção daqueles que entram de carro pela garagem. Todas as manhãs, logo cedo, seis horas, por exemplo, começam a chegar as primeiras empregadas domésticas e babás. O portão é aberto, barulho, há uma eclusa para o segundo portão, barulho. Por algum tempo, as que entram, ficam em conversa com o porteiro que fala alto. Depois dessa hora vêm os entregadores, de água, de pão, e “otras cositas más”.
Em princípio isso me incomodava muito, eu era acordado muito cedo e o resto do dia pouco tinha para fazer. No outro edifício que morei, em mais altura, dava para ver além da portaria, aliás, essa eu nem tomava conhecimento. Da sacada eu via o mar, muitos edifícios, as pessoas andando para lá e para cá, o movimento dos carros e das pessoas saindo dos outros edifícios próximos. Isso me deixava atento, em constante observação. Deu até para escrever algumas histórias, como a do francês, que proporcionava festas em sua piscina, aos sábados, e a do senhor das manhãs, que cuidadosamente, todas as manhãs, regava suas rosas vermelhas plantadas em diferentes vasos e colocadas em sua varanda.
Até me acostumar com a nova morada, passei por muitos “perrengues”. De minhas janelas era possível ouvir e ver o que estava acontecendo lá embaixo. Algumas vezes cheguei a me intrometer e da janela procurava resolver, mas não era compreendido nessa ação de preservar o patrimônio de todos. Os adolescentes, alguns irresponsáveis, não gostavam de minhas atitudes, cognominaram-me de “BigBroder”, programa de TV onde os protagonistas são espionados pelos telespectadores durante todos os dias e o dia todo.
A verdade é que, aos poucos, fui acostumando-me à nova rotina. Mas os adolescentes demoraram a me entender. Não sabiam eles que eu só aparecia nas janelas quando algo de anormal estava acontecendo. Eu não era o síndico, mas esse era negligente com o condomínio. Então, o que me incomodava eu procurava resolver, nunca briguei, isto é, jamais fui às vias de fato com alguém, só discussão, que nem eram acaloradas. Eram apenas adolescentes.
Lembro-me que assisti a um filme chamado Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock com James Stewart e Grace Kelly, que retratava a vida de um fotógrafo profissional, confinado em seu apartamento por ter quebrado a perna enquanto trabalhava. Sem muitas opções de lazer, vasculhava a vida dos vizinhos com um binóculo, quando percebia alguns fatos que o faziam suspeitar que um assassinato fora cometido. Claro que não era o meu caso, não havia criminosos no meio daqueles adolescentes, somente meninos que queriam extravasar suas energias.
Havia também as rixas com os porteiros, as vozes de alguns deles eram estridentes demais, principalmente à noite, quando o silêncio deveria se fazer presente. As conversas com os notívagos, com aqueles que retornavam à casa, nas madrugadas, perturbavam sobremaneira o meu sono. Era preciso pedir-lhes silêncio, solicitação não muito bem aceita.
Felizmente os adolescentes cresceram, hoje alguns são pais, as garotas se tornaram mães, e quase todos foram morar em outras plagas. Chegaram outros, mais comportados e mais amigáveis. Acho que as pessoas estão assimilando mais as relações sociais, envolvendo nessa empreitada os filhos que estão aprendendo, desde cedo que, viver em comunidade implica flexibilização, ponderação e paciência. Estimular uma criança a participar, integrar e respeitar o outro leva à socialização, algo fundamental e natural ao ser humano.
Eu aprendi a ser mais flexível e mais paciente. Já não cobro muito daqueles que por um motivo ou outro me deixa impaciente. Hoje convivo harmoniosamente com os garotos e garotas do meu prédio. Agora vivo tranquilo a minha aposentadoria.