Questão de honra
_Pronto. Agora, a gente faz um furinho no dedo e encosta, pra misturar os sangues.
_Pra quê?! Dani, nós somos GÊMEOS. Nosso sangue é rigorosamente IGUAL!
_Mas foi assim que eles fizeram no filme...
_Filme! Filme! Não me venha com filmes! Aliás, nem sei porque estou assinando um pacto de proteção mútua com você! Esse é o tipo de coisa que irmãos fazem um pelo outro simplesmente por serem irmãos!
_Você tá é com medo de furar o dedo...
_Interprete como quiser.
***
_Eduardo, você tem que me ajudar! _Daniel pediu, num sussurro de agonia. _Ele vai acabar comigo, é sério!
_Deixa de ser estúpido, Daniel! _Eduardo retrucou, friamente. _Você dá atenção demais pra esse sujeito. Finja que não ouviu quando ele falar com você. E não sinta medo, bobalhões como ele podem *farejar* o medo. É tudo!
_Mas você prometeu que ia me proteger sempre, lembra?
_E é o que estou fazendo _o garoto tornou, ainda mais glacial. _Estou protegendo você da sua própria covardia. Você não pode correr pra debaixo das minhas asas sempre que alguma coisa o ameaçar.
Daniel se encolheu, amuado. Eduardo sabia ser cruel, quando queria.
Ambos eram bem novinhos naquela época e ainda eram muito parecidos. Gêmeos idênticos, anos mais tarde, ficariam tão diferentes a ponto de se tornarem inconfundíveis. Com oito anos de idade, porém, apenas os óculos diferenciavam Eduardo de Daniel.
Isso, claro, quanto à aparência. A personalidade dos dois não podia ser mais diferente e Eduardo tinha um QI uns duzentos pontos maior que o do irmão. Isso para jogar a diferença para baixo. Ele dificilmente sorria e era uma criança bastante rabugenta. Já Daniel era um garoto normal. Gostava de esportes mais seriamente que os meninos da idade, talvez, mas só.
Era por isso que, naquele instante, invejava o irmão. Um garoto maior e mais velho havia implicado com Daniel e havia jurado dar uma surra nele no fim da aula. O menino não sabia o que fazer. Ele nem cogitava ignorar o valentão e os insultos dele – era homem! – mas sabia que não tinha chances de uma luta mano a mano. Se, ao menos, ele conseguisse ser respeitado como Eduardo era... Ninguém se metia a engraçadinho com o jovem gênio, pois sabia que seria vítima da ironia destruidora dele.
_Eu queria saber dar aquelas tiradas dele na hora em que a pessoa me xinga e não depois, quando ela já foi embora _Daniel resmungava. _Pro Eduardo é muito fácil falar... Ele podia acabar com o carinha se quisesse, mas fica só falando “Dani, você precisa ser corajoso”, “Dani, você tem que fingir que não está ouvindo”. Hunf!
_E aí, como foi? _perguntou Carina, se aproximando. _O que ele falou?
_O de sempre. Admita, Cacá, o Gustavo vai me matar no fim da aula.
_Esse Eduardo é impossível! Não acredito que ele vai te deixar na mão! Ainda mais depois que vocês fizeram aquele negócio de “pacto de sangue” ou sei lá o quê.
_Ele acha que eu tenho que aprender a enfrentar o Gustavo _disse Daniel, lúgubre. _Vai ser um massacre.
Como lembrete sádico, Gustavo, um menino grande e abrutalhado que, aos 11 anos, fazia pela terceira vez a segunda série, passou pelos dois e disse para Daniel, em tom jocoso:
_Estou louco pra chegar a saída. Vou quebrar a cara, seu garoto estúpido!
Eduardo estava chegando e Daniel desejou ardentemente que ele dissesse algo, mas o menino apenas apertou os olhos e deu as costas.
_Droga...
Na hora da saída, Daniel esperou seu irmão. Tinha esperanças de que Gustavo não fizesse nada se ele e Eduardo estivessem juntos. Para seu desespero, no entanto, Eduardo pediu licença ao professor e saiu um pouco mais cedo para ir pegar algo no laboratório de Ciências.
A segunda esperança de Daniel foi sair sem ser notado, mas ela foi frustrada assim que o menino pôs os pés para fora da sala de aula. Gustavo estava bem ali, esperando por ele. Não adiantava. Daniel jamais conseguiria seguir os conselhos de Eduardo. Ele simplesmente não conseguia deixar de demonstrar seu medo, e foi só o valentão dar um passo em sua direção para o garoto sair correndo.
Ele não tinha nenhum objetivo consciente, mas seu inconsciente levou-o para o laboratório de Ciências. O dito-cujo ficava no fim de um corredor silencioso e escuro. Quando alcançou a porta (fechada, por sinal), Gustavo riu e zombou:
_Você é mesmo muito estúpido! Correr para um lugar onde ninguém vai poder ver ou ouvir a gente! Vou me divertir muito...
Daniel encostou-se na parede e começou a tremer e a suar por antecipação da surra. Nenhum dos dois viu a porta do laboratório se abrir de mansinho e ambos levaram um susto quando uma voz perigosamente suave saiu da escuridão do corredor.
_Pode parar de fingir, Dani. Já o temos onde queríamos.
Perplexos, os dois viram que Eduardo estava parado em um ponto do corredor onde a luz do laboratório iluminava o corpo dele, mas não o rosto, em que apenas se destacava o brilho dos óculos. Era mestre em conseguir aquele efeito. Ele segurava um béquer com um líquido malcheiroso e passava o dedo distraidamente pelas bordas do vidro.
_Aqui, ninguém vai nos ver ou ouvir _continuou. _Segure-o, Daniel.
A ordem fora tão peremptória que Daniel não se sentiu tentado a protestar. Atirou-se contra Gustavo e o segurou, como se o adversário não fosse quase duas vezes maior. Aliás, esse tinha perdido o rumo. Algo no brilho redondo daquelas duas lentes e no tom de voz do CDF-mor da escola o havia assustado.
_Está bem seguro, maninho? Espero que sim. Ele será a cobaia perfeita! Que bom que você cumpriu nosso trato e se fez de bobinho até atrair esse tolo para cá. Agora, vejamos... Preciso pingar ácido em uma das mãos dele e meu composto na outra para comparar o poder de corrosão dos dois. Qual pingo primeiro? Melhor esse ácido que já está comigo, não acha, Dani?
_S-Se você diz... _o menino arriscou.
Gustavo, no entanto, já ouvira o suficiente. Não era lá um dos melhores alunos, mas a palavra “ácido” sempre mete medo em qualquer um. Num esforço desesperado, ele se livrou das mãos de Daniel e saiu correndo.
Eduardo ficou um tempo parado, passando o dedo na borda do béquer. Seu único comentário foi:
_Eu falei, um idiota completo...
_Você ia jogar ácido nele *de verdade*, maninho?
_Tem que ter uma paciência... Claro que não! Você acha que os professores deixam a gente pegar ácidos fortes a torto e a direito? Isso no béquer é ácido sim, mas é ácido acético. Vinagre.
Ele entrou no laboratório e voltou em seguida, com a mochila.
_Vamos, já passou da hora de chegarmos em casa.
Daniel ficou calado por um tempo. Por fim, disse, inseguro:
_Obrigado por me salvar.
_Salvar você? Não seja ridículo. Ainda acho que você tem que aprender a se defender sozinho. Isso agora foi só uma questão de honra. Só eu posso chamar você de estúpido, seu estúpido.
Eduardo estava ligeiramente vermelho quando acabou de falar. Acelerou o passo, sem se importar em deixar o irmão para trás.
Daniel sorriu. Era uma das poucas pessoas que sabia o grande coração que havia por trás daquela rabugice toda.
...
Mas bem que não faria mal nenhum se Eduardo melhorasse um pouquiiinho o gênio. Só um pouquinho...