Conto das terças-feiras – A menina que odiava bonecas
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 17 de março de 2020
Mariazinha morava em uma pequena casa, em terreno invadido, cujo proprietário entrara na justiça para reaver o seu patrimônio. O senhor Otacílio era um homem ranzinza, mão de vaca, que ficara rico recolhendo objetos de metal nos lixões, limpando-os, desamassando-os, colocando cabos, no caso de panelas, soldando partes quebradas, melhorando suas aparências e vendendo-os aos moradores da área invadida, onde moravam mais de trezentas famílias. Nesse pedaço de chão e mato, sem infraestrutura nenhuma, moravam a mãe de Mariazinha e seus cinco irmãos, cada um de pai diferente.
Seu Tatá, como era conhecido o apanhador de metais, também era metido a conquistador, solteiro, sessenta anos, dizia que precisava se casar, fazer filhos que trabalhariam para ele quando mais velho e não tivesse mais forças para pegar no pesado. Ele tinha algumas garotas em mente, entre elas a Mariazinha, a preferida. Menina-moça, ainda, treze anos, era uma garota trabalhadora e a mãe tinha planos para entregá-la ao seu Tatá. Tinha-a como chave para abrir a “porta da esperança”, acreditando na promessa do futuro genro que, como dote, ofertaria para a futura sogra uma das casas construídas em seu terreno e vida boa para Mariazinha.
A garota era possuidora de um trauma. Aos onze anos fora violentada por um homem que lhe oferecera uma boneca para brincar. Bastaria que o acompanhasse até a uma casa em construção e abandonada. A menina, que nunca possuíra uma boneca, aceitou o convite e seguiu com o desconhecido até o local indicado. Ele não mostrara boneca nenhuma, ela tentara fugir, foi agarrada, foi estuprada e deixada no local. Somente quatro horas depois é que foi achada, apenas a procurá-la os familiares. Completamente desnorteada, com manchas de sangue na saia e pernas a criança não sabia descrever o que acontecera e porque estava ali. Em seu colo uma boneca de pano, feia e esfarrapada, que jogou ao longe.
Reabilitada, foi levada para a sua casa. A boneca foi destruída e enterrada no mesmo local em que fora encontrada. Sua mãe, receosa de que o fato se espalhasse pela comunidade, declarou:
— Esse assunto se encerra aqui. Não quero ouvir ninguém falando do que aconteceu com Mariazinha. Nem mesmo a polícia deve tomar conhecimento. E assim foi feito, o assunto ficou enterrado junto com a boneca.
A vida de Mariazinha transcorria normalmente, até quando ficou sabendo das pretensões da mãe e do senhor Otacílio. Adolescente, ela gostava de brincar de bola entre os meninos, quando não estava ajudando sua mãe com os irmãos menores. Naquela manhã, percebeu sua mãe conversando com o seu Tatá, conversavam baixinho, a mãe só balançava a cabeça, em sinal de concordância. Ela tinha raiva daquele homem, só não sabia por quê. Achava que ele gostava de sua mãe e que queria se casar com ela, era o que o povo dizia. Constantemente estava rondando a sua casa, às vezes parava para conversar, uma conversa longa, sua mãe pouco falava, parecia que tinha medo daquele homem.
Dois dias depois o seu Tatá, todo engravatado, num final da tarde, apareceu mais uma vez. Trazendo uma caixa enrolada em papel de presente e algumas flores. Parecia muito diferente daquele homem que rondava a comunidade, cobrando a debandada dos moradores de suas terras, aos brados. Agora ele sorria, falava manso, estava perfumado, perfume barato, sapatos velhos, mas lustrados para parecer novos, meias coloridas e camisa branca bem engomada. Seu Tatá e a mãe conversavam na pequena sala da casa. Só havia duas cadeiras, mesmo assim bastante surradas. Sua mãe até tomara banho, colocara o melhor vestido que tinha, à espera daquela ocasião. Mariazinha olhava os dois pelas frestas da porta do quarto que dava para a sala onde os dois confabulavam. Não estava achando nada legal aquele bate-papo. Ele falava, sua mãe era só sorriso.
De repente um grito forte ecoou por toda a casa:
— Mariazinha, cadê você. Veja que o seu Otacílio quer falar sobre o seu futuro.
— Futuro, pensou a garota. Eu quero lá saber de meu futuro.
Saindo do quarto, foi em direção à sua mãe, que exigiu que ela cumprimentasse o seu Tatá. Envergonhada estendeu a sua mão ao velho senhor. Ele respondeu ao cumprimento e entregou-lhe a caixa que trazia, dizendo — abra, é para você. Cautelosa, primeiro desatou a fita azul que transpassava a caixa, em seguida rasgou o papel de presente, e, para fazer surpresa aos que ali estavam a observá-la, mãe e os cinco irmãos que, pelo grito da dona da casa os fez acorrer à sala e, na expectativa, esperavam a irmã abrir o pacote e revelar o que havia ali dentro. Ao levantar a tampa da caixa sua face foi se contorcendo toda, e, num ímpeto de raiva, retirou o que estava dentro, uma boneca de pano, que jogou longe. Aos gritos e apontando para o homem que estava à sua frente falou:
— Foi ele, foi esse homem que me levou até aquele lugar. Em seguida, desmaiou.
Seu Otacílio, desconcertado, mirou a porta de saída e correu. Ninguém, por aquelas bandas, o viu nunca mais.