Lar interior

A festa estava acabando e eu esperava pelo meu Uber na frente do prédio, casaco acolchoado bem fechado para me proteger do frio da noite de outono; pelo menos, não estava nevando em San Francisco. Felizmente, não tive que esperar muito. Um Honda Fit prata, aproximava-se lentamente, faróis baixos. Conferi a placa: era a minha motorista, uma jovem negra de seus 30 anos, penteado afro puff.

- Eileen? - Indaguei, quando ela baixou o vidro do lado do carona.

- Paul? - Redarguiu, sorrindo.

Entrei no veículo e sentei-me ao lado dela, que acionou o GPS do celular preso no para-brisa.

- Mission District? Um bom bairro - avaliou Eileen, dando a partida.

- Os aluguéis têm subido por causa dessa fama - lamentei. - Se as coisas continuarem como vão, já estou me vendo morando num pardieiro em Tenderloin.

Mãos no volante, Eileen replicou calmamente:

- Eu morava em Tenderloin.

- Desculpe... não quis ofender - apressei-me em dizer.

- Não ofendeu - sorriu. - O bairro está horrível mesmo. Pensando positivamente, foi bom ter saído de lá.

- Bem, se saiu, imagino que tenha ido para um lugar melhor - arrisquei.

Ela abanou negativamente a cabeça.

- Você está dentro da minha casa; eu durmo no banco de trás desse carro.

Lancei-lhe um olhar intrigado.

- Sério? Você dirige para a Uber e não tem residência?

- Isso está se tornando mais comum do que você pensa - redarguiu Eileen com ar cansado, trocando de marcha. - Que há muita gente morando no próprio carro, não chega a ser novidade, mas como o carro também pode ser usado para gerar alguma renda, foi o que eu consegui para me sustentar enquanto não aparece um emprego fixo. E olha, está difícil.

- Puxa... eu lamento muito - foi a única coisa que me ocorreu dizer.

- É a vida - filosofou ela.

Subimos uma ladeira, atravessamos um cruzamento, as ruas quase vazias.

- E não é perigoso dormir no carro? - Questionei.

- Dormir fora do carro é bem mais perigoso - replicou Eileen. - Eu paro num posto de gasolina, desses que funcionam 24 h, onde posso usar o banheiro, tomar um banho. Cubro as janelas por dentro e durmo; no início da manhã, começo a rodar de novo. Mas não sei por quanto tempo vou poder fazer isso. Esse Honda já está com uns bons 10 anos, e não creio que terei dinheiro para bancar a manutenção.

- E como vai sobreviver? - Indaguei.

- Provavelmente, vou vender o carro e comprar uma passagem para Chicago - ponderou ela.

- Tem parentes lá?

Eileen sorriu de novo.

- Não. Mas é um lugar que sempre quis conhecer. Talvez eu vá fazer um pouco de turismo sem-teto.

Estávamos chegando ao meu endereço. Ela finalizou a corrida, que havia sido paga com cartão de crédito. Desafivelei o cinto de segurança e antes de sair do carro, comentei:

- Eileen, nós não nos conhecemos e não seria correto que eu a convidasse para entrar; todavia, gostaria de lhe dar algo pela história que compartilhou comigo.

Tirei meu casaco acolchoado e o entreguei a ela, que o segurou com uma expressão de surpresa.

- É um bom casaco. Não vai lhe fazer falta?

- A noite está fria, mas eu tenho um teto sobre a minha cabeça - argumentei.

E já me despedindo, dei-lhe cinco estrelas no aplicativo.

- [07-03-2020]