Conto das terças-feiras – O medo
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 3 de março de 2020
O medo é uma reação natural e involuntária que surge na iminência de algum tipo de perigo, quando se pressente que algo ruim vai acontecer, levando o organismo a gerar uma resposta imediata de alerta. Associado ao instinto de sobrevivência o medo é um mecanismo de proteção que nos mantém vivos. É uma emoção normal, que existirá sempre, evitando que a pessoa se exponha a grandes riscos. A reação exagerada ao medo pode transformar-se em estado patológico, em fobia, comprometendo a relação que o sujeito estabelece com o mundo que o cerca.
É nesse último estado em que se encontra a protagonista de nossa história de hoje, obrigada a ser refém em sua própria residência. Moradora em um dos mais violentos bairros de uma grande cidade do nordeste brasileiro, detentor do mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano - (IDH) do Estado, Jandira vive nesse terreno fértil em crime, com seus sete filhos, eram oito, um morreu no mesmo dia que o marido, em consequência de troca de tiros entre facções criminosas que lutam pelo poder local e seus pontos de droga. Crime nunca elucidado.
Ela quase não põe os pés na rua, virou fobia, que a paralisou deixando-a sem ação para lutar ou fugir dessa situação. Recebe doações de alimentos e roupas usadas, pela janela entreaberta. Como o Estado é sempre omisso nessas localidades, daí o baixo IDH, nenhuma entidade pública a incomoda. Os filhos não vão à escola e não têm amparo médico e social, mas são ajudados pela vizinhança, que também é bastante carente.
A taxa de assassinatos ultrapassa em muito o preconizado pela OMS, que é de 10 por mil habitantes, já aí considerada epidêmica. Entre esses números está também o assassinato do irmão, espancado até a morte com um pedaço de madeira, em pleno dia e em frente à sua casa.
A partir da morte do marido e do filho, ela, que era diarista, passou a viver de migalhas ofertadas por outros tantos pobres que habitam ao seu redor. São catadores de recicláveis, ajudantes de pedreiros, mecânicos de pequenas oficinas, ambulantes, diaristas, babás, descarregadores de caminhões, todos na informalidade, sem carteira de trabalho. População de mais de 20 mil almas, vivendo também em condições de insalubridade, sem escolas, hospitais ou mesmo de posto de saúde, berço de quadrilhas de traficantes locais e de egressas do Sul do país. Todo o bairro vive amedrontado, em silêncio absoluto em relação às quadrilhas que ali se instalaram. Não são cúmplices, apenas tentam preservar suas vidas.
A pretensão de Jandira é dar cabo da própria vida, só não o fez ainda, pelos filhos e pela sua religiosidade, segredou à uma das pessoas que a ajudam. Os vizinhos estão sempre preocupados com essa família destroçada, preferem ajudá-la a denunciar às autoridades por saberem que nada será feito.
A localidade assemelha-se às cidades fantasmas do velho Oeste americano, retratadas em filmes da década de 1960. Desertas, só entra quem os bandidos permitem, ocorrem constantes expulsões de proprietários de suas casas e consequentes repasses dos imóveis aos membros das quadrilhas, sequestros de bens e de pessoas e mudanças corriqueiras no comando dessas quadrilhas, pelo simples assassinato de antigos chefes. Um retrato cruel, Jandira vive aprisionada por vontade própria. Já seus filhos pela vontade da mãe. Alguns religiosos têm procurado amenizar esse problema, já conseguiram que o filho maior, Josafá, 15 anos, frequentasse uma escola dominical, onde vem recebendo ensinamentos bíblicos que repassa para os irmãos menores.
O ambiente residencial vem melhorando, diz o garoto, com a mãe que já vem permitindo receber, dentro de casa, religiosos interessados na recuperação de toda a família. A continuar nesse progresso, dentro em pouco o pavor que envolveu Jandira e sua família irá arrefecer e será possível que eles venham a se relacionar com as pessoas e viver normalmente.
Paulatinamente esses abnegados religiosos vêm se instalando nas periferias das grandes cidades, com o intuito de ouvir as vozes de contingentes marginalizados e submetidos ao descaso, desprezo e exploração, para depois buscar-lhes a libertação da violência extrema a que são submetidos.
É possível que o bem vença o mal!