No meu canto

Nesse canto do chão de pedra, caio dentro de meus pensamentos tão sólidos e, por vezes, gasosos. Escondida de todos, centro de mim, a idade já não me permite desfrutar do fumo, nem do gozo de meus cantos, as cordas vocais já fracas de tanto gritar para mim absurdos ilógicos. Neste ano, completo setenta e seis, uma velha moribunda e rabugenta, cuspida pelos mais próximos desamores.

A lei natural já me considera uma anciã sobrevivente do acaso. Já não ando, me apoio nas paredes enquanto arrasto meu peso nojento pelo chão que ainda não limpei. Os filhos que não tive, o marido que não possuo, as realizações que tampouco conquistei, atordoam minhas noites e causam-me insônias.

Levanto e decido olhar para o espelho do banheiro cinza… Aquela certamente não sou eu. As olheiras afundam meus profundos olhos, que já foram joias de admiração. A lente de grau disfarça as manchas da insônia, esses olhos viriam se afogar em desespero, mas não há tempo, o despertador toca, é o horário da insulina.

Já medicada, deito no sofá, esperando o amanhã tardar. Faço planos, enquanto aguardo o sono, talvez saia de casa para comprar um pão no próximo dia. O amanhã certamente e contra a minha vontade, virá.

Loa Morais
Enviado por Loa Morais em 29/02/2020
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