EU SÓ QUERIA SER GOSTOSA

Num certo dia de domingo pela manhã, à beira de uma grande piscina, embaixo de uma frondosa árvore numa mansão da cidade de Literacity, um repórter socialite encontrou com uma senhora idosa para fazer uma entrevista, por tomar conhecimento de que se tratava de alta patente acadêmica, rica, jurista, professora, catedrática, escritora, doutora, solteira, onze plásticas, e na alta sociedade possuía um currículo de fazer inveja a qualquer suprema mulher tribunalenta. Vou chamá-la aqui de “mulher”, em respeito ao anonimato exigido. Ligando o gravador, o jovem repórter começou a entrevista:

- Bom dia mulher! Em primeiro lugar, deixe eu tecer alguns elogios sobre seus predicados, uma vida de muito respeito, destaque, viagens, academias, trabalhos e livros publicados. Sobre a sua história, juventude e estudos. Como foi?

- Sou de família rica, sempre tive tudo o que eu quis, pois os meus pais não deixavam um sonho meu sem realizar. Meu irmão também era bem tratado. Meu primeiro carro foi aos 15 anos, parado na garagem para meu irmão mais velho me levar ao colégio e aos compromissos sociais.

- E sobre os seus estudos?

- Minha vida toda foi nos melhores colégios, mas meus pais deram muita sorte comigo, já que eu sempre era a primeira da classe, nunca ficando em recuperação nas provas. A cada dez no boletim, era um presente novo. Para mim era normal, mas para eles era mais uma vitória, divulgando aos amigos deles e outros familiares. Estudei na América e na Europa, presa dentro dos apartamentos, para não os desapontar. Antes dos 40 já havia feito doutorado e pós-doutorado, continuando com as minhas pesquisas. Enquanto eu estudava, eles pagavam tudo, sempre em instituições privadas.

- E na vida social, namorados, paqueras e amigos mais íntimos?

- Um problema. Pelo controle dos meus pais e a minha dedicação aos estudos, quase nenhum rapaz tinha a ousadia de me cortejar, mais propriamente falando. Respeitavam demais da conta os meus destaques escolares nas academias. Ninguém se sentia confortável em me tecer elogios gratuitos e tinham medo, de juiz a advogado, de médicos a enfermeiros ... de engenheiros a mestres de obras ... docente e discentes ... motoristas e cobradores ... assessores e assessorados. Nem pensar. Nem olhavam para mim direito. Eu sempre me achei linda, e muitas amigas também, diga-se de passagem. Eu gostava de ser assediada, cortejada e às vezes até vestia uma roupa mais ousada e cara, que sempre as deixava nos apartamentos alugados quando vinha visitar meus parentes aqui, a fim de evitar regulagens e críticas. Ao deixar de vez determinado país, dava tudo aos brechós sociais.

- E sobre o trabalho, ganhou muito dinheiro? Nunca pensou em casamento?

- Já depois dos 30 anos trabalhava intensamente, enquanto ainda estudava, ganhando um bom dinheiro, visitando o mundo e comprando as coisas mais caras que eu gostava. Mas fiquei só, só fui casada com os meus diplomas, certidões, títulos, placas e destaques. Meus filhos são alguns livros, teses, artigos e textos publicados. De quando em vez me aparecem aqueles puxa-sacos sorridentes, querendo botar a cara da gente nas páginas dos eventos, sites, jornais e revistas, para chamar a atenção. Um saco, às vezes, mas fui me deixando levar pela “rasgação de seda”. Agora já estou aposentada, passando uns anos depois dos cinquenta (rs rs rs)

- Aposentada agora, o que pretende fazer? Nunca pensou em adotar filhos, para não viver sozinha?

- Pretendo é viver. Sair com as amigas, tomar chopp num bar perto de praias. Ir aos cinemas. Viajar para curtir o que eu não pude ver durante a minha vida acadêmica e laboral. Dançar, enquanto as pernas aguentarem. Minha biblioteca agora é um fone de ouvido com músicas de qualidade, e uma tv de 86 polegadas para assistir filmes adultos. Adotar filhos, nem pensar. Filhos atrapalham quem trabalha, por mais amor que mereçam, a gente não tem tempo para eles. Por isso essa geração Catchup já tem a língua torta de tanto falar as palavras shopping, zap, face e instagram. Quase sempre quem cria agora é as babás, ou creches ou parentes. Quando a família é pobre, são criados pelas mazelas das ruas, mas se tiver parentes que ajudem, dê graças a Deus.

- Gosta então de viajar?

- Sim. Gosto muito de viajar com as amigas solteiras, viúvas ou separadas, pois a conversa é divertida, picante e sem compromissos. Aonde chegamos, elas sempre falam dos meus predicados acadêmicos, mas eu não gosto e fico chateada, tentando encurtar a nossa distância nos lugares que frequentamos. Umas delas às vezes encontram companheiros, mas mesmo após várias plásticas, tratamentos de pele, capilares e lentes de contato, eu ainda aparento muita séria, e isso me afasta de pretendentes. Aqui para nós, também aparece cada um brucutu, que Deus me livre. Não vale nem a pena tentar. (rs rs rs)

- Sobre o seu patrimônio, o que poderia dizer?

- Tenho muitos bens, controlados por um escritório de assessoria empresarial. Nem me preocupo, pois todo mês, entra muito dinheiro em minha conta, por conta de aluguéis e aplicações financeiras no mercado mobiliário das bolsas de valores.

- Estou fascinado com essa entrevista e o tempo está se esgotando. Nunca pensei na minha vida conhecer uma pessoa tão ilustre. O que gostaria de acrescentar?

- Agradecer pela preocupação de me ouvir neste consultório de um SPA, sempre com muita atenção, carinho e interesse às minhas palavras. A gente está ficando velha para contar histórias. Vejo tanta idiotice sendo feita no mundo pelo poder do dinheiro, enquanto os anos passam e os falsos espelhos não refletem as rugas que existem nos pensamentos de tantos imbecis mensageiros do nada, que brigam por tudo e não chegam a lugar nenhum.

- Poderia falar a sua idade, ou prefere não informar?

- Para quê esse negócio de idade? O corpo vai pagando pelos anos de vida, mas a mente teima em pensar que a idade parou no tempo, claro que isso não vai dar certo. Feliz de quem aceita a sua idade com retidão e honestidade de caráter. Naquela época era tudo maravilhoso e por isso não tenho nada a reclamar. Joguei minha vida no trabalho nas academias, enquanto outras mulheres lindas eram misses, modelos, atrizes e gostosas, muitas de expressões sensuais de admiração e de destaques eróticos, às vezes sem nenhum estudo acadêmico, mas as vejo felizes. Não tenho qualquer raiva ou contrariedade por conta da minha criação familiar, no sentido de que me deram tudo que eu precisava, sem explicar exatamente para mim qual era o objetivo final. Do meu jeito, eu sou feliz.

- Que bom. Com todo o respeito, eu acho que aprendi muito com essa sua entrevista e gostaria de lhe dizer que amei conversar com uma pessoa tão honesta e verdadeira, uma dama preciosa em supremacia na dinastia das mulheres competentes, que muitas gostariam de ser. Muitíssimo obrigado!

- Que pena que faltou uma coisa que nunca ouvi ninguém falar para mim em toda a minha vida. Daria todo o patrimônio, títulos, diplomas e comendas para ouvir, mas acho que irei levar essa falta para além do túmulo.

- Vixe! O que foi que eu NÃO disse?

- Na realidade, eu só queria na vida que alguém me chamasse de .....

- Chamasse do quê?

- De gostosa.

O repórter parou, olhou para os lados, ficou de pé e gritou:

- GOSTOSAAAAAAAAA!!!!

(Texto do Livro Celeiro e Escritores Eldorado - Coletânea de Poemas, Crônicas e Contos, 2020 - OSBN 978-85-8290-144-1 - Editora Sucesso)