O CISNE

A ampulheta de vidro escorria a areia numa vertigem consentida.O tempo.O vento.Naquele Inverno parado em que a idade se aviva e se reconhece no olhar incrédulo dos outros.

Ela coleccionava cisnes e tinha-os espalhado pela casa.Numa mesa, num móvel lá estavam todos soberbos e altivos.De cristal , de jade, artesanais ou fabricados em série, de vários materiais.

Marta vestiu o casaco, protegeu o pescoço com um cache col de felpa, calçou as luvas e saiu determinada para a rua.

Entrou no Torel, avistou a cidade aos pés, fulgurante.

- Lisboa mesmo na adversidade não deixa de ser…interessante.- pensou

Duas ou três almas passaram mas ela nem reparou.Apressou-se a descer a escadaria de pedra e a aproximar-se do lago em círculos, de água verde onde os patos nadavam com tranquilidade e destreza.Quedou-se à espera.

Andersen…O pato feio…as sevícias…as memórias dolorosas…o terror.Quis muito esquecer de um trago, mais uma vez.Não conseguiu.

Durante a sua já relativamente longa e sinuosa caminhada houvera sempre a agressão dos outros.O Bullying.

Toda a vida.Na infância remota, as outras.Raparigas cruéis e desapiedadas que troçavam do seu choro fácil, da sua índole frágil, das suas roupas severas e dos seus sapatos bicudos.

Lembrou-se da professora de Canto.Francine qualquer coisa.Francine Benoit.De cabelo á garçonne já grisalho, martelinho acústico em riste, tom, modelação, vibrações.A promessa.A música.Da professora de Desenho e óculos grossos, Maria do Carmo do rosto afogueado mas com um traço perfeito e divino nos esboços a lápis sombreados e traçados durante um silêncio de ouro e pérolas, repleto de magia.

Um casal de adolescentes beijava-se e entumescia-se do outro lado do jardim.Ela desviou o olhar.O rapaz apalpava despudoradamente a rapariga entre as pernas e ela parecia derreter-se e lubrificar-se descontroladamente.

Ela tirou da enorme mala que usava a tiracolo o saco de plástico com as côdeas de pão e os patos pareceram advinhar o conteúdo.

- Tenho pena mas não é para vós – cogitou ela.

Continuou na sua viagem, percorrendo a escola secundária os rapazes grosseiros que a perseguiram e chamavam perjurativamente “Noiva!”. Reviu a mesma cena com outras variantes na universidade.Cansada de se lembrar e de repente avistou-o ao fundo do lago.magnífico e solene, o cisne aproximava-se e ela, feita parva, desengonçada acenou-lhe e preparou-se para lhe atirar o pão.Mas então apercebeu-se de que algo estava errado.

A ave ressurgia em sofrimento, contorcia-se, não ligou ao alimento que lhe foi lançado e iniciou talvez a sua última dança circular e carpida, emitindo um som agoirento e aterrador.

Ela observou a suavidade apesar de tudo no seu deslizar pela superfície mas em que as patas se debatiam debaixo de água, numa luta insana impossível de acudir.

Alguém se acercou e disse:

- O bicho está a morrer.É o canto do cisne.

Ela assistiu.Até ao fim cruel.Com penas brancas,soltas e espalhadas, água revolta e sangue antes da queda.Ela sofreu confrangida e impotente por solidariedade e perda.

E deixou-se ficar um tempo já depois do cisne morto á beira do lago, debruçada sobre o lago, a sentir a vida a passar.

O casal desprendeu-se após um estremecimento em que o sexo acontecera num local público, vestidos numa esfrega aflita até ao final feliz.

Por fim. Marta levantou-se, recompôs-se, retomou o caminho sem saber para onde.As suas seis décadas ainda não lhe pesavam, talvez a morte chegasse um dia subitamente esquiva e ela sem qualquer expressão no rosto acabava por aceitar a realidade da vida breve.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 08/02/2020
Código do texto: T6861174
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