Bem me quer.
Foi num dia de verão, sábado à tarde. Mais cedo, por volta de 1h30, a temperatura no bairro atingiu 31° no termômetro de mercúrio dentro de casa. Na rua deveria estar marcando 39° ou algo parecido, e, detalhe, possivelmente com a sensação de 45 graus; normal na cidade do Rio de Janeiro.
Marcos tomou um banho, vestiu uma camiseta regata e uma bermuda, calçou um tênis, colocou a carteira com algum dinheiro no bolso e saiu, abriu o portão de casa e ficou em pé, na calçada, observando um lado e o outro da rua em declive sem decidir o que fazer, se subir ou descer, e nem ao menos resolver para onde queria ir. Ao reconhecer o Durval descendo pelo lado esquerdo caminhando devagar, esperou ele se aproximar.
Marcos e Durval eram vizinhos e amigos, brincavam juntos desde pequenos; agora já eram adultos, ambos com 18 anos, solteiros e prontos para o alistamento militar. Marcos era magro e baixo, tinha 1,65m de altura; Durval era grandão, tinha 1,87m, magro também, mas tinha sido gordo durante toda a sua infância.
Quando o Durval chegou mais perto, Marcos iniciou uma conversa:
- E aí, tudo bem?
- Tudo.
- Você está indo a algum lugar específico?
- Não, estou apenas caminhando para espairecer.
- Já que você não tem um rumo certo, vamos beber um chope no Bem me Quer? A gente vai andando, sem pressa, vamos?
Foi uma decisão tomada de modo repentino, talvez influenciada pela companhia do amigo, que era muito gente boa, e pelo dia também, que foi muito quente.
- Cara, eu estou calçando chinelos... Estou sem dinheiro e nem a carteira eu trouxe comigo. Não acho que seja uma boa ideia.
- Não tem problema! Se for pra você se sentir melhor, eu troco o tênis pelo chinelo; quanto ao dinheiro, bem, eu tenho o suficiente para bebermos uma caneca de chope cada um.
Na verdade, tinha mais, e se alguém lhe pergunta o porquê de ter dito aquilo, não saberia responder.
- A gente vai até lá pra beber um único chope... Unzinho!?
Fazia sentido a indagação, o dia foi quente à beça, e percorrer dois quilômetros para saborear apenas uma caneca de chope era muita extravagância. Marcos reconhecia, mas não quis contradizer o que já tinha dito, decidiu fazer uma surpresa e reforçou suas palavras.
- Meu parceiro, você diz que está sem grana, eu tenho algum dinheiro, mas só dá para dois chopes. Vamos combinar o seguinte: ficaremos conversando e bebericando e levaremos uma hora para secar o copo. O que você acha?
- Tá... Tudo bem... Eu topo.
Desceram a rua juntos e foram a pé para o restaurante. O Sol baixo no horizonte acompanhado da leve brisa que soprava em direção ao oceano transformou a caminhada num passeio descontraído. Não demorou a chegarem ao Bem me Quer, que ficava na esquina duma praça, e logo subiram o degrau na entrada do salão. Marcos, que ia à frente, olhou para o balcão no fundo do estabelecimento e avistou um garçom atento que já os havia visto, aproveitou a oportunidade e imediatamente gesticulou dois canecos de chope, um para si outro para o colega.
Por terem encontrado o restaurante vazio ele logo imaginou criar o ambiente para fazer uma brincadeira, caso houvesse a oportunidade, e escolheu uma mesa fora do alcance de visão dos funcionários estrategicamente encostada à mureta que cercava toda a frente da casa, com exceção da passagem de entrada. Qualquer um que estivesse no balcão e quisesse ver os dois ali sentados, precisaria dar alguns paços contornando uma parede interna ou deveria se achegar até a extremidade oposta do salão, o que não faria o menor sentido.
Mal se acomodaram o garçom lhes trouxe dois canecos de chope bem gelado; além de servir a bebida ele deixou sobre a mesa o cardápio da casa e ofereceu uma porção de Gurjão aperitivo, que foi educadamente negado pelo Durval. Ainda antes de se afastar ele disse: - se precisar de qualquer coisa é só chamar.
Contrariando o que haviam combinado, em menos de meia hora os dois já haviam esvaziado o caneco, tanto um quanto o outro. Vendo o encarregado de atender os seus pedidos se aproximar, o Marcos interrompeu de propósito o assunto em discussão, levantou-se da cadeira na maior lerdeza, para ganhar tempo, bebeu o que ainda lhe restava no copo e disse: - Durval, eu vou ao banheiro, na volta a gente continua essa conversa; e, bem à vontade, solicitou mais duas canecas de chope ao garçom, que, justo naquele momento, achegava-se à mesa.
O companheiro, assustado com o seu pedido, tentou questionar a sua atitude. - Marcos, como assim, mais dois chopes? Ele, no entanto, preferiu calar, pois esperava outra postura do amigo, uma exclamação de surpresa, por exemplo, algo do tipo: "Poxa!... Você tem dinheiro e passou o tempo todo me enganando!" Ele sorriria, por conta de ter sido descoberto o seu segredo, e os dois curtiriam beber com muita satisfação mais um ou dois canecos de chope cada um. Devido a falta dessa percepção do Durval, ele fez apenas um gesto com o braço, como quem diz: na volta eu esclareço tudo. Pensando no que acabara de ter feito seguiu para o sanitário duplamente satisfeito e com um leve sorriso no rosto; primeiro, feliz com a sua presença de espírito por não ter revelado o que não merecia de ter sido dito, ainda; e, segundo, pelo prazer de poder bancar mais esta despesa. Agora, quando já voltava do lavabo, decidiu criar um impacto maior, aproximou-se do balcão sorrateiramente e demandou uma porção de fritas - na sua imaginação, o petisco alegraria de maneira totalmente inesperada o bom momento de camaradagem -, em seguida pediu que também levassem a sua conta algum tempo depois. Quando regressou, chegou sério, como se nada estivesse acontecendo. O garçom já havia servido a segunda rodada de chope, ele reparou; notou, inclusive, que o colega nem sequer tocou no copo à sua frente, olhava a praça desamparado e se mantinha calado, meio ausente. Em vez de esclarecer o que fez ele retomou o argumento que deixou em suspenso e agiu de modo bem expansivo, para dar vida ao ambiente, todavia não demorou a ser interrompido. O Durval estava muito nervoso, de súbito cortou a sua fala e disse em baixo tom, embora rígido: - Irmão!... Você ficou maluco, cara!? Eu te disse que não tenho dinheiro, por que você pediu mais dois canecos? Não deveriam ser somente os dois primeiros? Eu não vou pra cozinha lavar louça, não, hein!
Percebendo que o amigo se deixou levar pela sua interpretação Marcos decidiu prosseguir com a representação e transformar tudo numa comédia.
- Calma, meu parceiro! Ninguém aqui vai lavar louça coisa nenhuma. Você se ligou na mesa que eu escolhi para a gente ocupar? Deu-se conta de que estamos colados à mureta e fora do alcance de visão do balcão? Procura ver se alguém consegue nos enxergar!
O Durval estava sentado de costas para mais da metade do salão, então, virou-se na cadeira, passou a vista no entorno e balançou negativamente a cabeça.
- Tá vendo, cara, relaxa! A gente bebe mais este chope e antes de acabar pulamos esta mureta, atravessamos a ponte no meio da praça e corremos em direção aos apartamentos; ninguém conseguirá nos pegar. Vai ser moleza! E vou logo avisando: segura o chinelo e corre descalço, para não haver risco de você tropeçar e levar um tombo.
- E você acha que eu vou pular esta mureta pra sair correndo, com o chinelo nas mãos, ficou maluco!?
- Bebe esse chope, cara. Não vai acontecer nada, vai por mim!
- Eu não vou beber coisa nenhuma! Não quero mais. Passou a vontade.
- Você nunca deu uma volta dessas no comércio, em lugar nenhum?
- Eu vou dar volta em ninguém, rapaz, que ideia!
- Tudo bem, mais um motivo para a gente aplicar um golpe aqui hoje.
- Meu parceiro, você está falando sério, não tem mesmo o dinheiro pra pagar mais estes dois canecos?
- Irmão, acalme-se, o garçom tá vindo aí.
O garçom chegou pelas costas do Durval trazendo as batatas fritas. Este até tentou negar que a porção fosse sua.
- Não, não, não. A gente não pediu nada disso, não!
O garçom assegurou que o Marcos havia feito o pedido e concluiu o seu serviço, arriou o prato sobre a mesa e afastou-se indiferente.
Pronto! O aperitivo terminou de causar o estrago no pouco de equilíbrio mantido pelo Durval; a partir daquele momento, não seria mais uma companhia tão boa. Para secar o suor escorrendo na testa ele pegou o guardanapo de modo tão afoito e desastrado que, ao invés de sacar um, trouxe vários, a porção menor ficou presa no porta-guardanapo. Virou-se para o amigo, sério e compenetrado, e disse: - Marcos, eu não vou pra cozinha lavar prato, não! Estou avisando! Você vai ficar aí sozinho! E, nervoso e aflito, atirou-lhe a bola de papel que amassava entre os dedos.
Marcos estava se divertindo, sentia dores na barriga e se contorcia na cadeira de tanto que ele ria, faltou pouco para ir ao chão. Durval, completamente transtornado, tomou posse do saleiro e salpicou sal sobre a bandeja, com tanto ímpeto, que o petisco logo mudou de cor e ficou tão branco quanto o pico do Everest sob a neve. Marcos olhou praquilo e não conseguiu conter o riso, era mais forte do que ele. Nunca havia rido tanto em sua vida. Foi com muito esforço que recobrou o comedimento e se aprumou na cadeira.
- Durval, você acabou estragando as batatas, cara! Agora ninguém vai querer comer esta porcaria cheia de sal! Bebe o chope, pelo menos.
Ciente de que o amigo era um camarada esperto, irônico e brincalhão, Marcos não conseguiu perceber o seu estado emocional abalado, acreditou piamente que ele já tivesse deduzido que havia mais dinheiro na sua carteira do que houvera confessado, por conta desse raciocínio julgou que ele estivesse interpretando o sujeito entediado, e, com muita naturalidade, bem ao seu estilo, fazia tudo ficar muito engraçado. Não admitia que ele o considerasse capaz de lesar alguém, e nem pensava nisso, portanto, sem o mínimo de sensibilidade prosseguiu com o divertimento pessoal. Informou, exagerando na patifaria: - Eu já estou esvaziando o meu copo, não demora a gente vai ter que zarpar daqui. Você pode ir à frente, se quiser, eu te dou cobertura.
Durval, atônito e desorientado, não desconfiou que, aquela fala não se encaixava no perfil do seu amigo - Marcos jamais faria uma proposta daquela, a não ser que fosse por gozação -, e, por isso, ele não falava, agia, somente; o saleiro em suas mãos transformou-se num talismã, algo mágico e de efeitos maravilhosos. Ele conseguiu fazer nevar sobre o aperitivo, a bandeja e todo o seu entorno sobre a toalha de cor verde bandeira. Pelo menos metade dela encontrava-se inteiramente branca.
Vendo tudo aquilo e sem perceber o sofrimento do companheiro o Marcos nem por um segundo conseguiu suster o riso.
Alguns minutos depois o garçom lhes trouxe a conta. Marcos se antecipou, recebeu a nota, conferiu os valores e pagou a despesa.
Os dois se levantaram calmos, tranquilos, afastaram-se da mesa com naturalidade, a mesma de quando chegaram, e saíram conversando até alcançarem a ponte no meio da praça. Foi quando o Durval, que intencionalmente arrastava o chinelo sob os pés, deixou o colega passar a sua frente e, ainda sobre a ponte, na primeira oportunidade, aplicou-lhe um soco nas costas exatamente sobre a coluna vertebral.
Marcos vergou todo o corpo, em vão tentou encontrar uma posição que aliviasse a sua dor, infelizmente não havia. Consciente de que o golpe era uma desforra, por causa da sua brincadeira, ele ria ao mesmo tempo em que padecia.
- Como você fez isso? perguntou, saindo de lado.
Com um leve sorriso no rosto Durval lhe apresentou o punho cerrado com o dedo médio saliente no meio dos outros dedos dobrados para a palma da mão, em seguida ele disse: - Eu não dei pra machucar!... Se bem que você merecia. Pode parar com a encenação.
- Pô, cara, num dei pra machucar, uma ova!
Durval fingiu-se condoído diante do exagero representado pelo companheiro e contornou-lhe o braço pelo pescoço sem fazer força; agarrados ele advertiu: - Para de cena! Já perdeu a graça.
Desvencilhando-se do amigo, Marcos retrucou: - Isso dói, tá!
- Então espera o próximo, pra você ver.
- Não, num faz isso de novo não, por favor.
- Ah! agora tu chora, né!
- Vai me dizer que você não deduziu, em momento algum, que eu tivesse mais dinheiro na carteira?!
Refizeram o caminho a pé na volta para casa e cada um numa calçada, lado a lado, na rua, debatendo sob risos e comicidade do Marcos, o motivo da imprudência de um e da falta de reflexão do outro pra levarem a brincadeira até o ponto em que chegou; quando precisaram atravessar um cruzamento, obrigatoriamente se juntaram, e ao se unirem, o Durval, querendo assustar, logo atrasou o passo numa simples ameaça de que aplicaria outro golpe; não teve a menor chance de simular coisa nenhuma, Marcos, alerta, ainda sob o efeito da encenação que adotara, não quis desfazer a impressão que criou quando sofreu o ataque sobre a ponte, pelo contrário, fez-se de ressabiado e imediatamente afastou-se sem se importar se o passo retardado foi mesmo a sério ou só de gozação. Por conta do gesto de um e da atitude do outro, ambos caíram numa risada vigorosa. Havia uma explicação razoável, a ação e reação dos dois era o puro reflexo de tudo que aconteceu naquela tarde quente.
Juntos chegaram bem, era flagrante o entendimento entre eles, e o rumo da conversa era outro.
Amizade que se fortaleceu depois desse episódio.