Quando tudo está perdido...
QUANDO TUDO ESTÁ PERDIDO...
José caminhava tristemente pelas ruas naquela noite, sem saber para onde iria, sem saber se acordaria vivo no dia seguinte.
Enquanto caminhava, pensava nos acontecimentos tristes que haviam marcado sua vida até então, e sentiu como se já tivesse vivido uma vida inteira. Mas tinha somente dezoito anos recém completados.
É bem verdade que ele sabia que talvez lhe restassem muitos anos pela frente. Mas para quê? Até então já havia experimentado tantos dissabores que já não fazia mais sentido viver um dia a mais. O mundo não lhe agradava mais.
Passou pela sua cabeça os momentos de desespero experimentados dias atrás, e isso ele jamais esqueceria, nem que vivesse cem anos mais.
Todas as lembranças estavam bem vivas em sua mente. Lembrou do frio que fazia naquela madrugada do primeiro ocorrido.
Estava em seu quarto preparando-se para dormir, quando ouviu gritos vindos do outro cômodo da casa.
Levantou-se em sobressalto e correu. Não lhe deixaram entrar no quarto onde sua mãe estava, então ficou esperando do lado de fora, impaciente e com medo, sabia que os gritos de sua mãe eram de desespero e que algo errado estava acontecendo.
Seu pai, Bento, também tentou entrar no quarto, mas foi impedido pelo médico. Não restou alternativa a não ser esperarem do lado de fora do quarto.
Dentro do quarto, sua mãe estava em trabalho de parto. José já havia presenciado em outras vezes sua mãe em trabalho de parto, mas naquela vez sentia que algo errado estava acontecendo, e não podia fazer nada, o médico não deixou que ele entrasse no quarto.
Momentos depois, que pareciam ter durado uma eternidade, o médico saiu do quarto, trôpego e falando palavras que eram difíceis de entender, mas disse o que deixou José em estado de choque:
- O bebê passa bem, mas a Sra. Maria está morta.
José sentiu seu mundo cair naquele instante. Sentiu que iria desmaiar, mas tentou ficar em pé. Sua amada mãe havia partido.
Seu pai, que se recusava a acreditar, pegou o bebê e entrou porta adentro chamando pela esposa, que não respondia. Havia uma poça de sangue nos lençóis e o rosto de Maria estava pálido como a lua, mas sereno, como se dormisse um sono tranqüilo.
José, ainda do lado de fora do quarto, de imediato sentiu o hálito de álcool do médico. Ele estava bêbado, por isso a fala enrolada e os tropeços diante dos móveis.
Sabia que havia algo errado acontecendo desde que ouvira o primeiro grito da mãe, e se sentiu impotente por não ter conseguido salvá-la. Sua mãe morreu por negligência médica durante o parto.
Ainda estava caminhando pela rua, quando veio em sua mente as lembranças do segundo ocorrido.
Aconteceu alguns dias depois da morte da mãe, quando José tentava se recompor. Estava alimentando os animais no sítio e cuidando das plantações, quando um de seus irmãos, muito assustado, veio lhe chamar:
- Depressa, aconteceu algo com nosso pai. Venha comigo.
José acompanhou seu irmão mais novo até a casa onde viviam.
Encontraram o pai deitado, com os olhos fechados e o rosto calmo, como se estivesse dormindo tranquilamente.
Chamaram pelo pai, mas ele não respondia. Já não respirava mais.
O médico, que chegou instantes depois, atestou a morte por tuberculose.
Essa foi a segunda grande perda de José. Jamais pensou que, com apenas dezessete anos, enfrentaria perdas tão dolorosas. Sentia-se como se o mundo estivesse lhe fechando todas as portas.
Enquanto ainda caminhava naquela madrugada, José quase não percebia os automóveis passarem tão perto dele, quase o atropelando.
Estava tão imerso em suas lembranças e pensamentos, que realmente não percebia que estavam próximos demais. Talvez fosse isso o que ele queria, para acabar de vez com sua dor.
José tentou seguir em frente, e como tentou. Tanto que, dias após a morte de seu pai, com o pensamento firme de que precisava ser o homem da casa, já que lhe restaram seis irmãos menores que dependiam dele, e considerando que já completara dezoito anos, dirigiu-se até o Quartel da cidade para fazer seu alistamento.
Esperou alguns dias. Em resposta ao seu requerimento, José foi informado pelo Serviço Militar, que não havia sido selecionado porque era órfão de pai e mãe e porque precisava ficar em casa para sustentar seus irmãos menores.
Sem saber mais de onde tirar forças, sentiu-se desamparado e sem saída. Foi por isso que caminhava naquela madrugada, esperando apenas que um dos inúmeros automóveis que por ali passavam tirasse sua curta vida e acabasse com seu sofrimento.
Mas isso não ocorreu. José foi acordado na manhã seguinte por um homem, seu tio Bento, que o chamava desesperadamente, perguntando o que ele fazia ali, deitado no frio e desamparado.
Após José explicar os motivos que o fizeram permanecer a noite ao relento, seu tio, com uma voz suave que ele jamais esqueceria, lhe disse calmamente:
- Sua vida começa agora, venha comigo, tenho um trabalho para você na obra onde trabalho, há muito o que fazer lá e estamos precisando de gente que nos ajude, e você pode começar hoje à tarde mesmo.
José, sentindo-se ainda zonzo por ter passado a noite em claro e sem conseguir pensar direito, mas sentindo-se aliviado por ter recebido a oferta de trabalho, agradeceu ao tio, levantou-se de imediato e caminhou com ele até sua casa.
Após tomar um banho, vestiu-se e preparou-se para o primeiro dia de trabalho.
Chegou à obra com o tio, bem disposto e animado com o novo trabalho, e trabalhou arduamente até o anoitecer.
Chegando em casa, José juntou-se aos seus irmãos e pensou consigo mesmo: “Realmente, a vida começa agora, e espero que seja longa.”