Anos dourados...

Meu pai raramente falava comigo, meu pai praticamente não tinha participação na minha criação. Nunca entendi isso. É um episódio difícil de esquecer. Dói mais que qualquer surra. Meu pai me dava as coisas. As coisas que ele queria dar e quando ele queria dar. Lembro pouco disso tudo. A dor faz a gente esquecer. Nunca falei nada disso antes. Não falar é como não mexer no braço quebrado... Lembro dele me tirando do meu quarto no dia do meu aniversário de seis anos de idade e eu tomando um susto com o caixão que estava na sala. Eu não tinha ideia do que estava acontecendo e ninguém me falou nada. Descobri ouvindo comentários aqui e ali na casa do Seo Noel, dono da Cooperativa do Der, que foi pra onde me levaram e me deram um Cebolinha de apertar. Não me lembro de nenhuma festa antes disso de aniversário e minha mãe disse que nunca mais fizeram porque era a data da morte do meu avô. Parece que eu fui o culpado da morte dele... Nos outros anos só lembro da minha mãe me levar no F-Sil e mandar eu escolher um brinquedo na prateleira. Natal também era assim. As vezes o presente ficava escondido embaixo de uma mesa na sala grande da casa da Virgílio. Não consigo lembrar de algum abraço a não ser da Vó Chica que sempre me dava um presente tipo uma machadinha, uma fisga de caçar rã... Não lembro do meu irmão falando comigo, jogando futebol comigo ou falando de mulher comigo. Nunca. Mas eu tinha amigos. Até hoje tenho. Daquela época. De infância. Nunca vi meus pais numa reunião de Pais e Mestres. Minha mãe me disse a pouco tempo atrás que eu era bom aluno e não precisava e que eles precisavam trabalhar, mesmo meu pai trabalhando em frente a escola e minha mãe a quatro quarteirões. Nunca tirei uma nota vermelha mesmo e mesmo eles nunca olharam meus cadernos... Meu pai descobriu que fazia seis meses que pagava a faculdade de Direito à toa porque fazia seis meses que eu não ia. Eu avisei que não queria mais fazer. Queria vender carros. Eu tinha uma Puma Gtb S II, única da cidade, uma RD 350 zero km e alguns carros na loja que eu trabalhava... Mas é verdade que ele me deu uma Mobylette aos 14 anos. Encontrei na garagem quando cheguei da escola na hora do almoço. Perguntei pra ele na mesa e ele respondeu: - É sua... Minha mãe que foi comigo de volta na garagem e deu os documentos e recomendou cuidado e etc... Meu pai já estava tirando a sesta depois do almoço... Fui preso com a Mobylette...

Também é verdade que meu pai me deu um Fiat 147 um ano depois. Mas não perguntou se eu sabia guiar. Não deu uma volta no quarteirão antes. Talvez ele soubesse que eu andava de carro com o Ada, o Zé Eduardo, mas ele não me viu guiando um carro. Simplesmente foi até o meu quarto e me deu o documento do carro no meu nome (pra não dar confusão se eu fosse pego pela polícia de novo), as chaves e disse que não tinha muita gasolina (eu comecei a fazer faxina pra minha mãe pra ter dinheiro pra por gasolina fds). Bati o carro na frente do Venâncio nessa noite, a primeira vez que saí. Bati na traseira do Ada e quando fui dar ré pra fugir da polícia, bati no Mazzei que vinha atrás de mim. Fugimos os três. Eu tava com a minha namorada no carro. Tive que pagar o conserto com o salário do meu emprego no escritório do irmão do Ada.

Ah, antes disso uns dois meses, meu pai me mandou passar na Honda da Prudente de Moraes. Tinha uma ML 125 zero km paga, no meu nome, pra eu retirar lá. Tenho a foto dela. Ele comprou um Spazio zero para o meu irmão. Acelerando um pouco a história, esse Spazio veio parar comigo um dia e um dia que eu já estava cansado de ficar sendo manipulado. Tudo acontecia e ninguém falava comigo antes. Mas falava com meus amigos. Um dia fui lá e comprei meu primeiro Opala. Com 18 anos de idade. Rebaixei, coloquei escapamento, somzão. Se nos outros carros meu pai nunca olhou, o Opala ele nem chegava perto. Tinha ódio. Eu amava. Minha namorada de vários anos já, adorava almoçar com ele. Passava a tarde inteira em casa enquanto eu trabalhava. Mas comigo o silêncio era funesto... Com meu irmão era diferente, ia nas formaturas, saíam juntos de carro, conversavam. Eu ficava isolado. Um dia fiz negócio com um médico japonês já falecido e peguei uma 400 Four de coleção e uma pistola Glock 765. Mas não tinha munição. Meu pai ficou sabendo e uns dois dias depois cheguei do trabalho e tinha uma caixa de balas da pistola bem em cima da minha cômoda. Fui falar com ele e ele me disse que um amigo da polícia tinha arranjado e que não precisava pagar. Minha mãe ficou sabendo e ficou possessa! Sempre foi assim. Sem esperar algo acontecia. Depois do Opala nunca mais me deu nada a não ser quando comprou uma casa nova para o meu irmão e me deu uma Parati preta de taxi. Rapidinho troquei de novo a Parati num outro Opala. Meu pai nunca me levou num médico, nem mesmo quando eu era criança e tinha convulsões. Meu tio Oswaldo, irmão dele que fazia isso. Meu pai nunca assistiu um jogo de futebol meu e eu me lembro das vezes que fui treinar com uma chuteira vagabunda e não me colocaram no treino porque todos tinham um pai pra pressionar o treinador e eu não. Só me restou ir pra casa e engolir o choro e a comida. E jogar bem pra ter fama e assim ter vaga nos times infantis. Meu pai nunca assistiu uma corrida de bicicleta mesmo a largada sendo a poucos quarteirões da porta de casa. Nunca me cumprimentou quando eu cheguei com uma medalha ou um troféu. Ou um diploma. Minha mãe dizia: "- Guarde isso, vá tomar banho e venha comer." Estão guardadas até hoje... Como estão guardadas muitas perguntas por que nunca me responderam ao menos com um sorriso...

Tem horas que eu penso, seria melhor eu ter tomado uma surra... Ia doer menos...

Sandro La Luna
Enviado por Sandro La Luna em 04/02/2020
Código do texto: T6857944
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