A CASA
A CASA E O TEMPO
(R.LESSA)
... toda solidez é solidão temperada de esperas...
Para aquele tempo a casa de médio porte transitava entre a opressiva sensação de pequenez e a enormidade inconsolável de um deserto do sentir. Localizada em qualquer lugar que fosse jamais seria complemento de vivências comuns e naturais do que comumente era considerado viver. Para ela seguiam tempos de esperas, durante os dias que se seguiram essa mescla de sensações difusas eram acolhidas pelo peito que ansiava soluções diante da vida que teimava seguir adiante, mesmo com o hiato contínuo que perambulava os nublados pensamentos daquela que sonhara um dia ser protagonista de sua própria vida.
Logo na entrada da casa o tempo era marcado pelos vasos de folhagens por serem refrescadas pela água que raramente lhe era servida. Vasos dividiam espaco com o carro e eram devidamente guardados por um portão eletrônico por ela recém instalado. Sozinha, havia a necessidade de antever possíveis perigos que pudessem rondar sua vida. A garagem guardava a entrada da casa e de si.
Os móveis da sala logo na entrada que foram justapostos anteriormente de acordo com desejos de outros, ali permaneciam sem a mácula do bem viver de um cotidiano ungido de convívios e contatos familiares. Eram, de certa forma, cenários empoeirados que por vezes eram limpos por conveniência das contingências sociais. Lá fora, os movimentos da rua eram espelhados pelas vidraças de janelas jamais abertas e ocultas por grossas cortinas. O tapete era solitária e esporadicamente pisado pelos pés de quem lá, por hora, morava sem nunca ser habitante do lugar. Santos antigos ornavam improvidado altar de perdidas fé e obrigações outrora tão fervorosa. Soubera da sala, e que ela jamais seria verdadeiramente sua, através dos dias que se acumulavam pelos cantos e móveis tão convenientemente colocados em seus respectivos e estaticos lugares, ela não os moveria pela simples e involuntária imperícia de se sentir pertencente àquele lugar. Na parede quadros parados, simulavam vida no lugar, um televisor sempre desligado tambem parara no espaço como o antigo relógio de parede que teimava cessar o tempo do lugar, sem jamais consegui-lo. O tempo e a casa seguiam.
Adentrando pelo pequeno corredor percebia-se, à duras passadas, conexões entre os demais cômodos da casa; limpo de sentimentos, direcionava o corpo autômato para quaisquer dos ambientes que poderiam serem necessários para vivenciar o bem estar em um lugar tão bom de se viver. Era por vezes iluminados por três lâmpadas pendentes e justapostas, corroborando assim com a luminosidade um tanto lúgubre da sala que ficara para trás. Tal corredor certamente esperava-a diariamente na esperança quase que vã de ser povoado de vidas passadas diariamente por entre suas paredes.
Logo na primeira porta do corredor o escritório com livros por serem lidos e consumidos pela mente sedenta de saberes e escritas, que possuíssem o mesmo desejo de palavras a serem paridas nada mecanicamente por ela, que se extasiada a cada parágrafo, permitia que suas inspiracoes viessem à luz em alvas e virginais páginas, por vezes de cadernos, vezes outras pelo virtual espaços contidos no velho computador que sempre ligado, aguardava pelo teclar de seus esperados textos, já tão raros de ocorrerem. Coube ao local o gestar a espera de seus já tão raros e saudáveis momentos de lucidez literária. Temendo perder-se em seus já tão conhecidos temores a única janela existente no cômodo permanecia fechada, sendo aberta somente quando ela desafiava a si mesma e investia na luminosidade para apagar-lhe o breu que pressentia devora-la a cada respirar. O escritório consumia-se em solidões de temporárias obscuridade mentais e luminosos relances de soluções de porvires.
Já na segunda porta do corredor havia o quarto de visita, que jamais fora visitado; pequeno, inerte e pronto sempre para recepcionar quem que milagrosamente o ocupasse. Tapete, moveis e vontade de ser ocupado era o que nutria esse espaço; afinal barulho de gente era necessário ao local, mas contrariando sua vocação na casa, era inexistente outra vida Sr não a dela, e a não ser quando a janela era aberta e era invadida pelos burburinhos dos pedestres que transitavam na calçada ou pelos sons dos automóveis que na rua passavam. O quarto gestava também o desejo de ser habitado e presenteado com risos e diálogos calmos e carinhosos de pessoas que se queriam bem.
Retornando ao corredor, na terceira porta habitava o quarto principal onde ela devorava a maioria do tempo com seus pensamentos naquela cama que dava-lhe espaço de sobra para desaquietar-se em desassossegos. Ousava inventar ser quem jamais seria lá fora da sua casa, bem como perdia-se em lágrimas engavetados com suas vestes nos armários e cômodas existentes no local. Partes de tudo o que era eram sorvidas pelas paredes e servidas em fracionadas porções durante os dias que ali ficava disposta a espera de um telefonema, mensagens ou presenças que jamais chegavam. Trancou-se em esperas e esperanças e deu-se direitos de debrucar-se em escritas que pudesse se fazer entender. Mesmo sabendo que outros jamais conseguiriam realmente adentrar em sua moradia, insistia em se fazer presente nas palavras que aos outros enviava, deixando oculto nelas um grito que calava na voz, mas se fazia presente em suas mensagens. Ela sabia que sua casa seria sempre interpretada mas nunca adentrada, mas insistia sempre crer na possibilidade de um dia, nesse seu tempo e ainda a tempo, que seus tão intrincados códigos fossem por alguém decifrados, como lhe eram claros e preciso naqueles cômodos de si mesma que habitava convulsivamente e que se expressavam com maior força no quarto principal de sua vida.
Ao final do corredor chegava-se a cozinga, a luminosidade da porta de vidro e duas vidracas que davam para o quintal, deixavam o sol adentrar durante o dia e a escuridão na noite que sempre chegava, contando tempo a tempo, a vida que se esvazia pelo viver. Ela tentava sempre a limpeza esperada para um local tão sagrado de uma casa, muitas vezes abrandava a fúria da solidão nos alimentos que casualmente preparava raramente no local. Desde que se mudara, há um ano, jamais fizera os tão conhecidos quitutes que muitos já tinham apreciado outrora e que a deixava tambem poeticamente inspirada a cada ingrediente colocado de acordo com as antigas receitas de seus secretos livros. Cada objeto desse ambiente era fruto de aquisições que tinham por objetivo não somente serem utilitários, mas serviriam cada um para aquecer a alma desse local que usado seria para nutrir a esperança de que novos e necessários sentidos e sentimentos fossem possíveis a ela que há muito deixara de temperar-se e dar-se viço ao que por hora vivenciava. Olhava para aquele cômodo como se nele depositasse as tantas possibilidades que poderia desfrutar se seu olhar deixasse de ser cegados pelo nebuloso e obscuro temporal que se conformava dentro de seus pensamentos. Cozinhava diária e mentalmente idéias e ideais que a libertaria da inércia que se encontrava.
Raramente abria a porta de vidro que dava para o quintal. Temia ser invadida pela luz que a cegaria de vez, impossibilitando assim a sua mórbida inspiração que conscientemente se tornara dependente, para que pudesse manter-se segura em sua estavel zona de um sofredor conforto. Essa solidão era seu maior vício e sua maior tortura. Um engendrado jogo que ela mantinha para sobreviver no que acreditava ser seu maior desafio: a vida. No quintal azulejado, nada de terra havia senão alguns raros vasos ressecados com teimosos cactos sobreviventes, conjuntamente com alguns lamuriantes pássaros engaiolados há muito, e recebidos por herança de quem certamente nunca mais retornaria. Bicicletas recostadas na parede ilustravam um juvenil passado de ventos nas faces desejosos de também juvenis sonhos de liberdade, era um passado enferrujando de saudade. Vez ou outra, roupas aguardavam serem secas em varais em conformidade com o tempo que escorria por vezes ensolarado, outras vezes tecidos por chuvas torrenciais. Peitos e braços acolhiam as estiagens e as inundações que por consequência eram vertidas pelos olhos que assim estravasavam sentimentos plurais.
Na lavanderia, junto ao quintal jaziam vestes antes coloridas, num similar vontades de novamente serem úteis. Além das vestes, eram ensaboadas as histórias de si mesma.
Por último, e talvez com muito mais intensidade, ficava no fundo do quintal, anexo à lavanderia, o quarto em que o restante do passado se misturava e tudo restante era depositado em inumeras caixas sobrepostas, inundando o ambiente de acumulos que muitos considerariam desnecessários, mas que ela inevitavelmente não se permitiria o desapego, por serem objetos que estruturavam -lhe de imaginativas e inventivas memórias criadas com o tempo ido. Haviam coisas que ela jamais se atreveria novamente tocar, e ali permaneceriam cicatrizadas; outras a conectava a momentos bons. A maioria, e por que não dizer, tudo atava miríades de instantes somados e que somente a ela teriam reais significados. Lá ficavam os tais objetos, lá moravam seus fantasmas mais secretamente guardados e que ecoavam criticamente, coibindo-a de viver e seguir em frente pelo resto de tempo que lhe restava.
Cada cômodo dessa casa era parte dela e ao mesmo tempo, como se tudo contrapondo, nada dela habitava o local, pois ela era sombras daquilo tudo que um dia ousou sonhar ser.