O documento era pequeno. Quatro páginas e 12 artigos. Era possível lê-lo em cinco minutos. Ao ser assinado e lido em rede nacional, mudou a face do Brasil e o mergulhou nas trevas. Os militares não precisavam mais de autorização para matar, torturar e prender.
          Após o AI-5 entrar em vigor fui preso. Num primeiro momento o desespero, o medo da tortura, de não ver mais minha mulher grávida de seis meses e por consequência não conhecer meu filho, tomou conta de mim.
          Na prisão colocaram-me um capuz preto de pano vagabundo. O cheiro desse capuz era o cheiro do medo. Amigos já tinham me falado sobre ele e isso me deixou ainda mais apavorado. Rezei baixinho o Pai-Nosso.
          Então o terror começou. Tiraram minhas roupas e fui colocado na cadeira do dragão, um trono com tampo de metal onde amarraram meus braços com um sarrafo. Levei porrada em todo o corpo, enquanto gritavam ou apertavam o capu para trás e jogavam amoníaco na minha testa. Eu não consegui inspirar e minha respiração ficava convulsa. No final amarraram um fio na minha orelha, outro no meu pau e levei vários choques.
          Após horas de tortura jogaram-me numa cela suja e fria totalmente nú. Eu não tinha nenhum controle sobre meu corpo, minha cabeça e meus sentidos. Eu não existia mais como ser humano. Quis morrer mas pensei no meu filho que estava para nascer. Eu não iria conhecê-lo. Consegui chorar mas ao soluçar senti forte dores no corpo.
          Não lembro quantos dias fiquei assim e um dia minha cela foi invadida por uma luz forte. Meu avô, que morrera há dez anos apareceu ao meu lado. Senti uma paz enorme e adormeci.
- Durma meu neto - ainda lembro de ouir meu avô dizer em voz baixa.
          Não sei quanto tempo dormi. Acordei em um quarto branco que parecia um hospital. Não sentia mais dor e meu corpo não estava mais machucado. Sentei na cama e logo meu avô veio.
- Como se sente meu neto?
- Vô....eu morri?
- Você desencarnou sim.
- Meu fulho vô. Eu não vou conhecê-lo.
- Você recebeu uma permissão especial. Venha, temos uma visita  a fazer.
          Meu avô pegou minha mão e em segundos fui transportado para um quarto de hospital. Leila minha mulher estava deitada, ladeada pelos meus pais e do pai dela. Uma enfermeira entrou no quarto e colocou um bebê nos braços dela.
- Meu filho vô - falei emocionado -
- Meu bisneto.
          Fui para o lado de Leila ver o rosto do meu filho. Ele era a minha cara.
- Meu filho lindo. Você parece muito com o seu pai. Vou lhe contar tudo sobre ele. - disse Leila -
- Minha filha qual vai ser o nome do meu neto? - perguntou meu pai-
- Yago - respondi junto com Leila -
- Escolhemos juntos - Leila falou emocionada -
- Minha filha pense na proposta que sua tia fez. - Pediu meu sogro- Uns anos em Paris, longe dessa confusão que o Brasil está, será bom para você e o Yago. Tenho tanto medo que venham atrás de você.
- Não pai. Não posso. Yago vai crescer aqui nesse Brasil confuso, cheio de defeitos, mas que o pai dele amava e morreu lutando para torná-lo melhor. Renato não gostaria do filho longe da praia, do futebol, da galinha ao molho pardo, do carnaval, enfim, das coisas que ele gostava.
- Você está certa minha filha - concordou meu pai - Estaremos com você sempre.
- Além do mais eles queriam o Renato e conseguiram. Não corro perigo.-finalizou Leila -
          10 de abril de 1984. Yago aos quinze anos, prepara-se para ir ao comício das diretas já com o pai e o avô. Os três usam uma camiseta com a foto de Renato. Leila olha para o filho, que literalmente está a cópia do pai e diz:
- Yago não saia de perto de mim e do seu avô. Entendeu?
- Tá bom mãe. A senhora já repetiu isso mil vezes.
- E vou repetir quantas vezes for preciso - falou Leila abraçando e beijando o filho.
          A Candelária estava um espetáculo. Leila feliz de estar ali e orgulhosa de Yago estar finalizando a luta do pai. Como Renato estaria orgulhoso dele. A ditadura militar estava no final e todos estavam com o mesmo espírito.
          Na hora em que a multidão cantava o hino nacional Leila deu um papel para Yago ler.

"Seu pai lutou e deu a vida por este momento."
          Yago leu o papel e abraçou a mãe. Renato chorando abraçou a mulher e o filho. Seu avô aproximou-se e disse:
- Venha Renato. Temos que voltar.
- Vô meu filho é lindo.
- É sim. Agora vamos.
          Renato e o avô desapareceram. Yago e Leila continuaram cantando o hino nacional bem alto. Leila olhou para o céu e sussurrou:
- Eu te amo Renato.
          Em 1985 Figueiredo não conseguiu colocar um militar na presidência e Tancredo Neves foi o primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura.

 
José Raimundo Marques
Enviado por José Raimundo Marques em 29/01/2020
Reeditado em 29/01/2020
Código do texto: T6853798
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