Um gosto amargo na boca

“O pão que comemos e o vinho que bebemos se transformam no espírito que temos”. E.R.N

Minha mulher respirava suavemente. O peito subia e descia levantando o lençol. A boca entreaberta e um sorriso maroto nos lábios. É, a noite estava sendo boa para ela, menos para mim que sofro de insônia. Acendi o abajur e dei uma boa olhada no rosto dela como quem olha a superfície lisa e brilhante de um lago. Senti que por baixo de toda aquela calma noturna havia um mar de turbulências como o que havia em mim. Afinal, é complicado dormir sabendo que quem está ao seu lado não dorme. Mas, devido à gestação ela conseguia desligar e dormir.

Um minuto depois pulei da cama na ponta dos pés. Abri a porta e fui para a sala. Meus passos lentos soavam como batidas de tambor dentro da minha cabeça. Saí da sala e fui para o quintal. Lá fora os murmúrios da noite chegaram a mim como toques de buzinas distantes, tvs ligadas nas casas dos vizinhos; como cães solitários que ladram em fundos de quintais.

Sentei em uma banqueta e acendi um cigarro. Sei que serenava, quase imperceptivelmente, pois o cigarro tinha um gosto mais amargo e o papel estava úmido. Fiquei em silêncio total, tragando e tragando quando ouvi o barulho, o chacoalhar de um carrinho de mão. Eu já conhecia aquele carrinho. Era de um catador de recicláveis. Percebi no momento em que ele parou em frente ao portão e vasculhou o meu lixo. Ouvi quando pegou as latas, os litros e os plásticos e os jogou no seu carrinho. Depois de um tempo ouvi um barulho baixo, quase inaudível, não estranho para mim.

Foi esse barulho que me fez recordar, sentir e voltar ao passado. Primeiro o cheiro e depois o gosto. Eu tinha dezoito anos e viajava sozinho pela primeira vez. O destino era a capital do estado. Lembro-me que, naquele tempo, não havia nada no mundo que cheirasse mais do que café. Nem nada que fosse mais gostoso que um pão francês. Naquela época eu tinha inveja até das pessoas que podiam peidar, pois eu sabia que só peidava quem comia. Mas, eu disfarçava muito bem. Não conseguia, entretanto, disfarçar minha pobreza já que eu era jovem, sem experiência e sem um centavo no bolso.

Lembro-me, primeiramente, do que me foi dito naquele tempo: “Aqui ninguém tem dó de ninguém”, o engraxate falou. “Por isso, empurre minha cadeira para lá e para cá nesta praça que eu te dou dez por cento do que eu ganhar. E pode desmanchar essa cara de tristeza da minha frente que cara feia pra mim é fome”. Aquele homem baixo, arrogante, sem pernas, possuía senso de humor e uma boa cabeça, eu pensava.

Ao meio dia costumávamos comer cachorro quente e tomar café - que ele mesmo fazia - em uma lanchonete pobrezinha num dos cantos da praça. Ele era conhecido dos proprietários e, por ser muito falante e levar as mãos cheias de moedas, era esperado no lugar. Ele me apresentou como um desvalido, um pobre coitado, tímido e lento que fora até a capital à procura de trabalho. E ele estava certo. No entanto, eu esperava uma oportunidade de encontrar algo melhor para fazer. Eu sonhava demais, todavia não tinha terminado nem o ensino médio.

As pessoas do lugar, incluindo os proprietários da lanchonete, começaram a fingir que gostavam de mim pois fingiam que gostavam dele também. A gente percebe essas coisas na expressão das pessoas. Quando ele e eu chegávamos de bolsos cheios éramos bem recebidos pelos sorveteiros, engraxates, vendedores do jogo do bicho e até pelas meninas que faziam ponto debaixo dos pés de oiti, porém quando chegávamos sem dinheiro viravam as caras. Uns pareciam estar muito ocupados olhando o trânsito, outros olhando para a tv na parede da lanchonete e os mais parecidos conosco miravam as próprias mãos e os pés.

Tudo transcorria desse modo: havia dias bons e havia dias ruins. Somente as noites eram totalmente boas, pois era quando se podia dormir. Os que não podiam dormir devido à fome ou à insônia - assim como eu - aproveitavam o quase-silêncio deixado por aquela multidão que podia. Eu, mais que todos, me deleitava com a noite. A minha cama era a maior que havia. Eu dormia na praça e tinha a cidade ao lado como companheira.

Assim vivíamos até que um dia o engraxate não apareceu na praça. No começo, achei que ele havia dormido demais. Depois das dez fui até a lanchonete e pedi o endereço dele ao dono do lugar. O homem me ensinou que ficava numa pensão ali próximo do centro. Fui a pé mesmo. Andei algumas quadras e avistei o prédio velho e encardido da pensão. Parado na entrada tinha um carro de polícia com o pisca-alerta ligado. Senti um tremor por dentro e quase adivinhei o que aconteceu.

Quando quis dar meia volta um policial, que estava na viatura, me perguntou o que eu fazia ali. Expliquei quem eu era e ele me informou o que havia acontecido. Disse que o cadeirante seria detido, interrogado e, possivelmente, preso devido à gravidade do fato. Fiquei surpreso e o policial me explicou que se não fosse a desproporcionalidade da reação do meu amigo e do motivo do crime ter sido fútil ele responderia em liberdade pelo ato que praticou.

Ao sair do local encontrei o carro da funerária que dobrava a esquina. Assim que cheguei à praça algumas pessoas, nossas conhecidas, já comentavam o acontecido: o cadeirante desferiu cinco facadas em um mendigo que tentou roubar a sua garrafa de café e dois pães franceses de dentro de uma sacola. A maioria dos que ali estavam – engraxates, sorveteiros e flanelinhas – desculpavam o meu amigo. Alguns outros achavam que ele exagerou já que o mendigo, segundo se soube, estava faminto e desarmado. Eu não tive opinião formado sobre o fato naquela manhã. Até hoje não tenho. Naquele dia eu senti apenas uma vontade imensa de ir embora. Lembro de ter ido se sentar no banco mais distante da praça com um sorveteiro já idoso e de, após ter chupado uma dúzia de sorvetes, ainda estar com um gosto amargo na boca.

O mesmo gosto amargo que sinto agora. Uma vez o médico me disse que era o fígado, já eu acho que é o mundo. Às vezes, ele se torna intragável, incomível e quando a gente tenta engolir ele – o mundo – à força o nosso organismo reclama, sofre, morre aos poucos. E aos poucos enquanto penso a brasa do cigarro queima meus dedos e a saliva aumenta em minha boca.

Ainda ouvindo o mendigo remexendo o lixo, cuspi com força no muro do quintal, joguei o cigarro longe e caminhei pelo corredor ao lado. Assim que cheguei à varanda da frente olhei por cima do muro e vi o homem. Ele parou de mexer no lixo e me encarou. Era um velho alto, magro e maltrapilho. Me encarou com olhos duros. Em seguida e, lentamente, ergueu as mãos como se estivesse se desculpando. Nas mãos sujas de dedos compridos e unhas grandes eu pude ver as sobras do pão francês que havíamos jogado fora de manhã.

Ele permaneceu parado feito um poste e eu fiquei mudo como uma casa abandonada. Depois, sem pensar direito, eu disse o que só eu poderia dizer àquela hora da madrugada: o senhor não aceita um copo de café? Sem tirar os olhos de mim ele balançou a cabeça afirmativamente. Eu fiz o mesmo. E me afastei devagar andando de costas. Já no corredor disparei correndo para a cozinha. Entrei, peguei a garrafa de café e um copo plástico. Saí ligeiro, tentando não fazer barulho. Já estava no corredor quando ouvi o som de passadas, latas e materiais caindo. Quando cheguei ao muro vi o homem correndo e olhando para trás. Restos de papelão, plásticos, latas e ferragens esparramavam-se no meio da rua. Eu levantei a garrafa e gritei, mas ele já estava longe.

Então, voltei devagar ouvindo os cães ladrarem cada vez mais alto. Ouvi gritos nas ruas mais para baixo. Ouvi a sirene da moto do vigilante e depois, bem depois, um silêncio triste e perturbador. Sentei-me novamente na banqueta e permaneci quieto, sem fumar e sem cuspir, apenas sentia o vazio se aproximando como se aproxima a chuva: pequenas gotas de desespero que batem geladas nos corpos quentes dos humanos. Então, levantei-me e entrei em casa.

Estava derramando o café na pia quando minha mulher acordou. Aproximou-se, pôs a mão no meu ombro e me perguntou se eu estava insone de novo, se não era hora de procurar um médico, se ela podia me ajudar de alguma forma. Disse isso de uma só vez e me piscou calma e sonolentamente. Para tudo isso eu disse sim e a conduzi pela mão até o quarto com o coração aos pulos.

make
Enviado por make em 29/01/2020
Reeditado em 29/01/2020
Código do texto: T6853388
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