O pano de boca e o bueiro

Era quase Natal e as meninas me esperavam no restaurante que, depois de muita luta, selecionamos para ser o lugar do nosso encontro, uma das trinta e cinco confraternizações que a gente marca no final do ano. Naquele dia, quase na hora de começar a me arrumar e vestir a minha filha, um amigo chega à minha casa para narrar o último mês da vida dele, uma vez que, fazia mais ou menos isso que não nos víamos. Na correria, acabei pedindo para que ele nos deixasse no local do encontro, já que, por conta da visita dele, eu havia me atrasado. Antes de sair, no entanto, com o cuidado de quem prepara um ritual religioso, organizei a bolsa e separei o pano de boca mais lindo que encontrei na gaveta dela. Para quem não sabe, pano de boca é um desses paninhos, menores que fralda, que usamos para enxugar a baba que desce da boca da criança. Bolsa organizada, seguimos escada abaixo. Entramos no carro, instalamos a cadeirinha e foi dada a partida no carro rumo à confraternização. Chegando ao local, eu muito desajeitada, como acontece quase sempre quando invento de sair sozinha com a minha filha, desinstalei a cadeirinha e ao tirá-la de dentro do carro o pano de boca – o mais lindo do enxoval, feito com tecido diretamente vindo da Patagônia, ou assim eu gostava de acreditar, aquele das ocasiões especiais, pois parece pecado limpar a baba do bebê em público com qualquer fralda, como se fosse uma vergonha como mãe você não escolher cuidadosamente o pano que você utilizará para essa função – simplesmente, caiu dentro do bueiro. Lá estava ele, no buraco cheio de folhagem. Olhei para o meu amigo e com um sorriso sem graça fingi que aquilo não era importante. Digo que fingi porque ainda analisei a possibilidade de resgatá-lo, mas além do meu braço não ser longo o suficiente para alcançá-lo pensei que provavelmente a higiene estivesse completamente comprometida, ainda que, fosse utilizado produto esterilizante nele. Ah! Que seja! Era apenas um pano de boca. Deixei para lá. Ou pensei que tivesse deixado, pois quando me sentei à mesa com as minhas amigas, a minha cabeça não estava ali, mas no maldito pano de boca dentro do bueiro. Era tão lindo e agora eu teria que limpar a boca da menina com uma fralda que, depois da perda do pano de boca, parecia horrorosa e indigna da baba da minha filha. Calculei milimetricamente o tamanho do meu braço e a profundidade do bueiro. Comecei a pensar que talvez não fosse tão anti-higiênico assim pegá-lo, já que, não tinha lama, apenas umas folhas – mas não, quem faria isso com a própria filha, meu Deus? – Afastei o pensamento. Resolvemos pedir o almoço e optamos pelo fantástico prato de camarão recomendado pelo garçom. Eu amo camarão e isso ia - com certeza me fazer esquecer o que aconteceu – pensei eu. Passados alguns minutos, com a boca cheia de camarão, eis que me percebo lamentando novamente a perda do pano de boca como quem lamenta a perda de um objeto sentimental que lhe foi dado como presente por alguém muito querido. Tudo bem que ela havia ganhado como presente de um amigo querido do meu trabalho, mas analisando a situação o que eu estava sentindo parecia mais uma obsessão gratuita. Depois de me convencer de que eu estava me agarrando a uma questão perdida, afinal o pano de boca havia caído no bueiro sujo e eu não poderia insistir em resgatá-lo e ainda usá-lo novamente na minha filha nem que ele ficasse no álcool por três dias, voltei atenção para o que me levou até ali, a confraternização. Mas ainda hoje me pego pensando naquele pano. Ele ainda está lá, eu sei. E quando menos espero, a lembrança dele vem. E vem também uma leve risada por saber que, embora alguém consiga enxergá-lo lá dentro, essa pessoa não faz ideia de como ele foi parar ali e de que, agora, ele abriga uma história.