Como grãos de areia

Ainda era bem cedo de manhã e Yahui Quan preparava o desjejum, quando ouviu alguém bater na porta da quitinete onde residia com o marido, Xiang Chen. Àquela hora, em um dia de semana, só podia significar uma coisa: problemas; enxugou as mãos num pano de pratos e foi atender. Diante dela, um dos vizinhos do prédio e do trabalho, Hui Chao, cabelos despenteados, camiseta e bermudas.

- Oi, Yahui. O Xiang já acordou?

- Já, está tomando banho. Quer um baozi?

- Vou aceitar...

Yahui ofereceu uma cadeira para o visitante inesperado, enquanto ia pegar um copo de leite de soja e a travessa com os baozis na cozinha minúscula. Hui recebeu as ofertas com satisfação, e não esperou o dono da casa aparecer para começar a comer. Finalmente, Xiang apareceu de shorts, toalha pendurada no pescoço.

- Veio filar um baozi, Hui? - Ironizou Xiang, esfregando os cabelos úmidos com uma ponta da toalha.

- Os baozis estão ótimos como sempre - assegurou o visitante. - Parecem os da minha mãe, Yahui.

A jovem agradeceu com um sorriso e uma vênia de cabeça.

Hui tomou um gole de leite, antes de prosseguir:

- Mas o motivo de eu estar aqui, tão cedo, é porque aconteceu uma catástrofe: o governo fechou o Mercado Cherkizovsky.

- O governo... a prefeitura de Moscou? A polícia? - Questionou Xiang, perplexo.

- Governo... bem, você sabe... - Hui deu de ombros. - O dono do Cherkizovsky é Telman Ismailov, que é inimigo de Putin. Quem você acha que mandou fechar?

Xiang, expressão abatida, sentou-se em outra cadeira diante do amigo.

- Como pode ser isso? O mercado é a fonte de renda de milhares de pessoas... nós, inclusive. Como podem fechar sem nenhum aviso prévio?

- O que vai ser feito dos nossos estoques? - Indagou Yahui, apreensiva, enquanto servia um copo de leite ao marido.

- Boa pergunta - replicou Hui. - Podemos dar como perdidos: o rádio informa que a polícia está dando batidas, prendendo comerciantes e apreendendo a mercadoria. "Tudo falsificação e contrabando", estão dizendo.

- Como se todo mundo não soubesse disso! - Indignou-se Xiang, cerrando os punhos.

- Não adianta esbravejar - arguiu Hui. - Perdemos tudo.

- O que vamos fazer? - Yahui voltou-se para Xiang.

O rapaz segurou as duas pontas da toalha, como se quisesse manter as mãos ocupadas.

- Esperar um pouco para ver; pode ser que reabram, já aconteceu antes.

- Não quero ser pessimista, mas acho que não vai ter volta - afirmou Hui.

Xiang e Yahui entreolharam-se.

- Um mês. Depois, vamos ter que tomar o caminho de casa - declarou Yahui diante do silêncio do marido.

Um mês depois, Yahui, Xiang, e milhares de outros nacionais chineses, apinhavam as plataformas da estação Yaroslavsky em Moscou, aguardando o trem da Transiberiana Zarengold que os conduziria numa longa viagem de dias de duração até Pequim. Hui, que era solteiro, decidira ficar ainda mais algum tempo, e fora despedir-se dos amigos.

- Vou tentar encontrar algum trabalho junto à comunidade chinesa, caso contrário, sigo no próximo trem - declarou, dando-se praticamente por vencido.

Hui sabia que o futuro na China talvez não fosse exatamente róseo, todavia, ao menos estaria de volta ao lar. No momento, era a única certeza de que dispunha.

Os três trocaram um último abraço e depois Yahui e Xiang embarcaram com suas malas e pacotes no vagão, de onde acenaram para o rapaz na plataforma. Hui acenou de volta, intimamente já lamentando não ter partido imediatamente com eles.

- [26-01-2020]