Um Encontro

“So many people live within unhappy circumstances and yet will not take the initiative to change their situation because they are conditioned to a life of security, conformity, and conservatism, all of which may appear to give one peace of mind, but in reality nothing is more damaging to the adventurous spirit within a man than a secure future. The very basic core of a man's living spirit is his passion for adventure. The joy of life comes from our encounters with new experiences and hence there is no greater joy than to have an endlessly changing horizon, for each day to have a new and different sun.”

Alexander Supertramp

11/06/2011:

Eu quando criança fui cego na crença de meus pais. Fui um bom estudante, se quer saber. Menino recluso, escondido em óculos com péssima vestimenta, claro que não de vestimenta em si, mas sim de péssimo gosto. Sempre a espera de um pouco mais de asma e reconhecimento. Isso caminhou até meus dezesseis, quando tive minha primeira relação.

Como posso explicar… Imaginem dois seres, tão diferentes como poderiam. Um, digo eu, meu único momento de vaidade era de posicionar com perfeição minhas novas fitas com meia dúzia de músicas mal gravadas, na prateleira. Culpa de meu menino Sérgio, o Serginho, meu grande camarada (desde cedo já interessado pelas máquinas) mas depois vamos a ele. Me acostumei com as cotidianas injustiças do mundo (depois me rebelei). Meu pai sempre firme e altivo no alto de seu jaleco e com cheiro de conhaque sempre presente, normalizou-às dizendo que essas “coisas” diferenciam os humanos. me acomodei. Sempre fui muito diferente. mas eu sempre tive uma felicidade; mesmo muito magro e singelo, com alguns reais cruzava a cidade inteira, quer dizer meu humilde mundinho. Saia da Consolação e meia hora chegava na Liberdade (julgue), desembocava na eterna Legenda Livros, o melhor sebo de todos, ou pelo menos assim eu imaginava. Comprar um CD, um livro surrado de fantasia e um, às vezes dois doces nipo-chinês diferentes. Dona Sayko sorria ao me ver cruzar a entrada da loja, que ficava no cruzamento do sebo. Sergio certamente já lia aquele volume, criamos horas sem fim de conversa e por fim poderia gravar uma vez mais uma série de músicas…

Vamos a ela:

Ela não era próxima, não era da mesma escola nem do mesmo bairro. Ninguém nessas circunstâncias se arriscaria a ficar comigo. mas que seja. Ela tinha uns tantos centímetros a mais (quando perto me sentia um anão), das poucas vezes que eu a vi, uma coisa era constante: seus brincos extravagantes. Eu sempre fora acostumado a ver mamãe e seus brincos brilhantes, sempre se ajeitando para ir a algum evento dos colégios; o dela era mais peculiar, penas negras penduradas… mas sem pressa, vamos ao meu momento:

Serginho tinha pedido auxílio para conseguir finalizar sua nova construção para a nota em trabalhos manuais; uma máquina que não sei ao certo qual era sua função, alguma coisa que apitava. só fiquei segurando os penduricalhos e os fios, na realidade, fiquei mesmo para depois jogar um pouco de Gears Of War,nesses anos eu era imbatível. Tia Celina mais tarde na guinada de uma partida e outra nos alimentava, como uma segunda mãe, boa senhora. fui embora com a barriga cheia e quase sem voz de falar sobre as regras de jogo. Uma contrapartida à minha eterna mudez no colégio.

Nessa cidade tão urbana como nunca antes na história do Brasil, ao contornar a esquina e me deparo com uma hippie. ou tentativa de. ela caminhava pela rua, mais alta do que eu, acho que já mencionei isso... uma camisa rosa depois de anos entendi que era uma série de TV, mas a verdade é que ainda não vale a pena ser mencionado. Em suas orelhas brincos berrantes de pena pendurados, suas pernas longilíneas se mostravam aos rasgos de sua calça jeans de aparência muito gasta, uma sandália de couro (tempos depois descobri que era herança de sua mãe).

Vinha toda sibilante em minha direção, cantando algo inteligível para mim. Vinha despreparada e caminhante. Seu olhos estavam cerrados apenas em foco para sua maluquice berrando que o fone lhe dava (depois de anos descobri que não era tão maluquice assim). Acho que fiquei hipnotizado por sua presença e espontaneidade, caminhei devagar, mas devagar ao ponto de que quanto ela se aproximou se assustou com a minha presença. Pela primeira vez pude olhar dentro de seus olhos, eles eram profundos e marrons (quiçá mel, depende do dia). Realmente levo em crença que fiquei hipnotizado.

Não preciso dizer que nessas circunstâncias descritas não fazia a menor ideia do que fazer para chamar a atenção. nada fiz. Apenas olhei ora sim ora não ao vê-la ir embora, sem sustos mais. será que ainda sibilava?

Semanas depois, após esgotar todos os assuntos de nossa alçada, serginho e eu tentávamos sobreviver a infindável educação física. Tive meus momentos de vôlei, mas minha intenção maior era ter com o meu único semelhante ali.

O “franjinha” (apelido maldoso dado a séculos atrás quando éramos apenas crianças) não apenas conhecia a minha admirada como tinha sua residência como vizinha. Serginho lento que só em assuntos que não maquinológicos estranhava horrores meu interesse na hippie:

Sempre imaginei você ficando com alguém mais descolada.

Você sempre quis me ver com aquela louca da sua prima- fato, Serginho sempre viu como um irmão, pra ele nada mais justo que encarar a sua prima. nem amargando!

qual é (risos), ela gosta de você. espera pra ver, se você não tomar jeito já logo passo teu número pra ela- disse saboreando entrar nesse ramo desconhecido da nossa camaradagem.

Nem brinca franja, só faltava minha mãe perguntando quem é Leila… já pensou? me enfio debaixo do tapete! - não aguentei e também cai no riso. Enfim aquele período de colégio estava sendo divertido.

Depois de alguns minutos olhando os outros meninos se esbofetearem pelo direito de ter a bola. Os de colete azul queriam lateral, os vermelhinhos o tiro de meta. quase senti a asma, só de olhar. me voltei para Serginho:

E aí, vai me falar sobre ela? - tentei ser sincero.

Ah, Gui, você sabe que não sou dos mais informados com meninas né?

Jura? - Abri um sorriso Honesto.

Sua sorte é que minha mãe e a mãe dela são amigas. Fizeram faculdade juntas… Ela já foi lá em casa, acho que tem 18, mas cara, tá se formando no San Martin (colégio). sei lá, ela só ficava mexendo com o miçanga (gato da tia Celina). Nem conversamos- Parou um pouco, digerindo provavelmente minha cara de interesse súbito.

Achei ela bem estranha. Pensando bem vocês combinam - Toda sua ironia coube nessa frase, não aguentou e soltou mais:

Quem sabe ela tire suas fraudes, tia Cida vai amar o Casamento.

Se fuder, Sérgio- No fundo adorei a ideia dela um dia conhecer minha mãe. - Mas calma, como chama a “peace and love” do San Martin? - Confesso que falei tentando me fingir desinteressado. Mas a curiosidade era maior.

Sofia… é Sofia o nome da sua amada - Abriu um sorriso de orelha a orelha. Se divertia em me ver naquela situação.

Me voltei para minha visão estudantil. “Sofia”, pensei comigo, o nome mais bonito da Grècia. Quem sabe aquelas penas pretas nem sejam tão esquisitas assim. Se os Hippies existem a tanto tempo é porque eles tem algo de bom, né? fiquei ali alguns momentos em pura reflexão. O sinal bateu.

Agora hei de contar algo que não me enche de orgulho. Minhas aventuras periclitantes pela efervescência da cidade pode parecer-vos muito romântica, mas a verdade é que era inocente, sem vontade de heroísmo. O mesmo vale para a seguinte passagem dessa história; Se passaram meses até que o encontro enfim acontecesse, nunca tive coragem de ir ao San Martin. Nem me arriscar pela lista telefônica e ser o admirador secreto da Sessão da Tarde. Nunca tive esse nível de coragem na adolescência. Não chego a me envergonhar. Apenas é. Sem mais demora, um dia (imagino) no jantar algo houve que Serginho deixou escapar que estava vidrado nas penas negras; Tia Celina sem demora não tardou em armar uma arapuca para ambos. Santa, devo tanto.

Tínhamos sempre o hábito de toda sexta depois do colégio irmos dormir na casa um do outro, apenas um pretexto para anistiados assistir mil vezes os mesmo filmes B e jogar até o dia amanhecer. Estranhamente Serginho desmarcou. Dizendo que na minha casa não podia ser, que tia Celina andava de marcação consigo e que eu lá seria um ótima pra “afrouxar” a coroa. Topei.

Fomos no carro de sua mãe, até tocava algo que rádio mas não me lembro, depois do que virá em frente só consigo me lembrar do contente papo que fazia eco no carro, uma comparação clássica de vilões, alguns aparvalhados tipo Stansfield no “Profissional” ou o tonto do Sonny Corleone (aliás, ele é vilão?), confesso que o ponto alto ainda era Franja defendendo o loirão do Bodhi, um tipo alta e sem sentido. O ponto alto se dava pelo próprio narrador, meu amigo com sua voz esganiçada tentava convencer, tenho dúvidas se ele queria me convencer ou só me fazer rir. bom, o segundo certamente ocorreu. A carro foi se aproximando do endereço, a porta foi aberta e depois de uns risinhos de mãe e filho eu entendi que havia sido enrascado. Com o pai de Sérgio conversava a “hippie”, vi de primeiro lance um riso espontâneo saindo de um papo muito digno. Seus olhos iluminados pela luz amarelada do lar sorriam e suas sardas se moviam com flexionar de sua bochecha. Sua cara de espanto foi dupla a minha. Tia Celina, na calada a chamou para fazer “noite” com Sérgio e o “amigo”. “Céus o que ela deve pensar de mim?”, “Será que me reconheceu?”

Confesso que a noite me ajudou, como já disse tia Celina é mesmo uma santa, fez questão de quebrar todo o gelo nos unindo em uma noite de jogos de tabuleiro, as piadas desconcertadas de Sérgio me deixavam me sobressair. Ficamos até raríssimas duas manhã nos divertindo com “WAR” e “Quem sou eu”, os pedaços de pizza nessa noite sumiram. Tudo estava perfeito, ele me olhava, os sabores eram incríveis (a tia até nos liberou um gole ou outro de vinho), Sofia me ria com os olhos a cada vez que eu investia em suas defesas e maltratava meu irmãozinho, ele teve de me perdoar, estamos já quase como dupla. Partida por partida os bocejos se somaram, na TV ainda se ouviu um restante de concerto do “Tears For Fears”, Franja e os pais em coro se levantaram para ir aos quartos, “será que dei tanto na cara assim?”. Cedi o quarto de hóspedes para Sofia. Mas ele continuou na sala fitando na tv a despedida com “Breakdown”. Com um dedo ou dois de vinho na sobra de taça me aproximei:

Sempre achei que Tears For Fears fosse nome de banda evangélica- disse abrindo um sorriso esperando ser aceito, ela riu levemente…. a conversa fluiu; das duas ficamos até as quatro vendo Radiohead, depois de The Smiths, depois ela foi para o quarto. “Boa noite, Gui”. como ela descobriu meu apelido? não dormi.

Fiquei duas semanas em transe. Nas conversas com meus camaradas o mundo rodava apenas em um sentido, Sofia. Enfim, peculiaridades de um primeiro amor inocente. Até minha irmã sabia das penas negras, primeiro me consultou esperando qualquer patologia e depois descobriu que era algo muito pior “não mata, mas marca e fere. só depende da ordem de ocorrência”. Em algum dia no tédio de tarde ela invade meu quarto, diz que estava em contato com Sérgio e que eu tinha mais o que fazer. Me dera o telefone da “Hippie” (nunca tive coragem de dizer o nome para elea...claro, sempre que nos encontramos ela me questiona “tem notícia da Sofia?”). Liguei, cambiante que só. não consigo me lembrar com exatidão, meu sentido auditivo me falhou exemplarmente, apenas me recordo de ter ido mal. Nunca estive tão próximo de conseguir alguém desejado. E pior, Sóbrio. Mas consegui, marcamos na Consolação, perto de casa, esperto, liguei para confirmar em momento planejado com ninguém em casa para me intrigar.

Eternidade (final):

Era sábado, chovia na cidade, um tipo de chuva de verão. As gotas que tocavam o solo subiam um cheiro de terra molhada. Eu logo me ajeitava para ir ao encontro. Meu estômago era revoltoso, sensação que só voltei a sentir dois anos mais tarde que fui ao exército, um misto de medo com descobrimento (hoje tenho minhas dúvidas que isso é felicidade). desci e caminhei pela rua Antônia de Queiroz, cruzei nervoso pela Rua Augusta, a extensão da rua se diminuía conforme aumentava meu nervosismo. Em determinado momento, conforme eu ia caminhante já avistando a Marquês de Paranaguá, São Paulo sorriu.

Entre os berros inóspitos dos camelôs, e berreiro desenfreado dos lixeiros que regiam o acelera e freia do caminhão; Mirei o céu, o tom alaranjado engrandecia e se desnudava para toda existência paulistana, o cheiro de terra molhada ainda era perfeito e os prédios se encheram de alaranjado, as pessoas brilhavam na janela, em pouco tempo o picho e o grafite se mostraram com todas as cores, arco-íris cosmopolita, virei na Paranaguá, fui vislumbrando a paisagem, o caos paulistano da era Punk deixou o ódio e a liberdade no urbano.

Tá perdido, gato?- me cantou uma voz. Me virei, lá estava ela. Me recordo como um retrato: cabelo preso, castanho com mechas marrons mais claras; Blusa cavada em espiral deixando os braços nus, senti pelo trançado colorido da blusa que era especial; Calça pastel e sua sandália de outrora. Nos ombros apenas carregava sua bolsa combinando com a calça, um pouco mais escura. O alaranjado perfeito brilhava em seu rosto, suas sardas me olhavam e sua bochecha ainda me chama. seus olhos tinham profundidade como nunca, talvez mais maduro eu pudesse ler sua alma.

Hoje o dia tá lindo, você viu? a chuva deixou tudo mais… sei lá - Disse eu tentando me manter tranquilo. convidei-a para andar.

É. Pra onde vamos? - disse se aproximando, dando o beijo e abraço. Céus me esqueci dos modos.

Você quer ir ao Shopping Frei Caneca? - falei apontando com o indicador para o fim da rua. só queria me mover.

Pode ser.- se pondo em movimento

Esse nome é esquisito né? é como se um padre tivesse sempre bebendo - abri um sorriso.

Você tem um problema com nomes né?- disse me analisando (me censurei)- Mas concordo, São Paulo tem dessas.

Sim! São Paulo tem muito dessas. Meu deus….tá, confesso, eu posso ter um problema com nomes de São Paulo - Me empolguei, Sofia riu- Olha onde a gente tá? Consolação. Você pega e me diz que vai pra Consolação, na hora qualquer um vai querer saber se você tá bem… “porque vai pra isso? ta precisando de uma ajuda? olha, conheço um psicólogo amigo da minha tia que é uma beleza!”. Arranquei um boa risadaria;

Ah, mas o pior é quando alguém me diz que vai para Saúde - me provocou Sofia enquanto chegávamos ao Frei Caneca. Paramos na porta. fiz questão para me ajeitar de modo que luz ante lusco-fusco ainda á tocasse.

Pois é - Afirmei- Consolação, Saúde.. tudo tão deprimente. Iguais aqueles filmes independentes que as sub-prefeituras ajudam e em agradecimento aparece “Saúde” nos créditos.

Dalí você já recebe uma bença e um pai nosso e já vai pra consulta- Disse sorridente- Por isso que não gosto dessa poluição toda. Por mim eu já faço faculdade e me mudo pra Santos, ficar mais perto do que o Universo fez pra gente. Viver na beira mar, não é maravilhoso?

Eu adoro descer pra baixada, mas você não curte a vibe daqui?

É bom, vivi muita coisa aqui, mas meu, esse caos faz com que a gente esqueça o que realmente somos… não sei explicar, só sentir.

Isso me lembra muito de uma música. Eu sou mais urbano.

Acredito - Disse com sinceridade- Você me passa isso.

Você até que me passa não gostar daqui- Ri convidativo uma vez mais, fui aceito - O que mais te passo?

Não sei…- me disse cerrando os olhos, fiquei desconcertado (não me julgue era a primeira vez).

Estávamos na porta da Frei Caneca, as pessoas passavam e nós continuávamos ali. O céu adquiriu uma coloração púrpura. depois de alguns segundos sem reação. Provoquei:

Posso te levar na Liberdade?

É uma piada com o nome?- Me fitou com ironia.

Não - Não aguentei segurar o riso- “Não, é pra ouvir sua voz por mais alguns quilômetros mesmo”. suei frio.

Então… vamos.

Me conta, qual é a sua história com o Sérgio?

Minha história com o Sérgio. OK… Nossas mães trabalharam juntas no mesmo colégio. tanto eu quanto ele fomos colocados na mesma sala. A irmandade veio naturalmente. Sempre fomos a dupla dinâmica.

Entendi- Ponderou- ele sempre me pareceu ser bem isolado. Estranhei quando vi você chegando com ele.

Ele é desse jeito, mas é um bom amigo, um irmão…. E você tem amigas...família? tem algum Sérgio pra te encher também?

Tenho sim. Meus pais tem eu e minha irmã, ela é gente boa. Mais nova, tento ajudar ela, já tá em outra vibe, sabe? já foi a época…

Calma, mas e você? Qual sua vibe agora?- Percebi um tom pensativo.

Agora? minha vibe é chegar na Liberdade - Me mirou de canto de olho entre a passada- Brincadeira, tô com pressão sabe? meus pais não me entendem muito bem, querem que seja alguma profissional no nível “San Martin”. E a verdade é que eu não sei o que eu quero, não sei quem eu sou e nem quero ser; e na realidade, eu não acredito que seja um problema, mas vem sendo. Mas não posso nem pensar em não ir pra universidade.

Você não me disse que quer morar em Santos? eles sabem disso?

Acho que sabem, nunca deixei de me expressar… mas, eu preciso me decidir, entende? eu gosto de pintar, na arte eu consigo me embriagar em paz e durante um minutinho que seja, eu tô cheia. Cheia de vida, cheia de arte, de amor pra dar, eu tenho um pouco de sentido… e depois eu me volto ao mundano.

Nossa- Leitor, entenda, eu não tinha capacidade para conseguir jogar luz na situação. - Eles sabem dessa sua veia artística?

Até sabem, mais sei lá.

Sei lá- Disse reflexivo ao botar meus primeiros pés na Liberdade.

Chegamos ao nipônico bairro, nos adentramos livremente diantes das lojas prestes a fechar. Meus colegas de Legenda me acenavam, acredito que pude até parecer mais sociável do que consta na realidade. As luzes se acendiam conforme os passos se somavam, íamos sem pressa, em lenta marcha, apenas aproveitando cada segundo de nossa conversa, caminhamos pelo viaduto e meu estômago atacou, como um estalo lembrei:

Você não vem muito pra Liberdade, né?- não fazia o tipo de alguém que anda com penas negras.

Na realidade, não. por quê?

Tenho uma surpresa. Me espera um minuto? - Pensou um pouco. Mas me foi respondido com um sorriso perdido e em aceno que sim.

Corri tudo o que tínhamos já revisado, passei pelo templo de Lohan, mirei a Legenda Livros e cheguei até Dona Sayko; Sem me pestanejar a minha querida me questionou “quem é a menina?” a cara de feliz de velha quase me matou de vergonha, fugi do assunto e logo emendei “Tem como sair dois pastenoli?”

corri de volta à ela, trazia comigo dois “pastenolis”, uma mistura escalafobética de pastel típico da liberdade (inclusive os “Libertos” reivindicam a autoria) e canolli, com um recheio de chocolate e sementes dignas de Japão, Pará e Florença. Ao acalmar meu esbaforo entreguei-a e continuamos.

Dúvido você não gostar. Como um desse todo fim de semana, na verdade sempre venho pra cá, todo sábado- disse em confidência

Bom, hoje não foi exceção- sorriu e se pôs a provar a iguaria

Então- aguardei.

É muito bom. Mas é bem intenso né?- Não segurei o riso:

Dona Sayko, a senhora que fez, diz que só come um por final de semana mesmo. Sei lá, nunca perguntei o por que. Tenho medo dela falar que não quer lutar sumô ou algo do tipo.

Pois é, tá certinho- Me sorriu ajeitando

Na real eu venho pra cá toda sábado desde que tenho condição de andar sozinho pela cidade. Eu acho brutal como aqui (nesse caminho) nós podemos ver tanta coisa, tantas vanguardas que um dia aqui estiveram, tantos emigrantes, tante gente simples e quase como andar em vários sets de filmagem...ah, tem até muito gente babaca também.

Como assim, quais seriam os sets que andamos? - Disse me mirando.

Eu acho que andamos por vários de Hitchcock, sabia?

Hitchcock, por que?

Ele passa tão bem o sofrimento angustia, acho que é o que mais vemos aqui. Talvez até um pouco de ódio. Saindo de casa mesmo, tinha tanta gente em pleno sábado que se berravam para conseguir vender algo, é difícil imaginar que a vida deles seja melhor… Mas tem muita coisa grande que eu vejo passando pela mão dele sabe? nos prédios tem muita marca da Anarquia já notou?

É aquele A riscado?

Isso, esse mesmo. Você sabe que os Punks dos anos 80 que faziam eles se escondiam nos metrôs com medo da repressão, diziam que eles eram comunistas, cortavam os cabelos e tudo, já ouvi algumas músicas deles...até que gosto….sei lá, acho que na mão de Hitchcock isso ficaria meio The Warrior’s, Selvageria urbana.

(viramos na rua dos estudantes)

Eu adoro The Warrior’s - O espanto foi duplo

Sério, não creio. Achei alguém fora o Franja que gosta de The Warrior’s… ainda mais… você.

Franja? é o Sérgio? - Seus olhos cresceram como se fosse um segredo revelado. não pude deixar de mergulhar naqueles castanhos lagos.

Pois é -Disse me arrependendo- Eu chamo ele assim por causo do cabelo dele, a um tempo atrás ele usava uma franja, mas não foi legal, fizeram Bullyng com o coitado. Se você puder evitar de chamar ele assim eu fico agradecido… ele pode se chatear comigo.

pode ficar descansado. Ele nem fala comigo direito- ficou pensativa- Vai saber.

Nem estressa com isso, Serginho nunca foi dos mais comunicativos… ainda mais com meninas- Me virei e vi seus olhos um tanto mais.

Ah, Warrior’s, gosto sim! imagina um desse em SP, seria qualquer coisa.

Seria mesmo- Concordei. Ela me instigou:

Você sabia que aqui em SP tiveram muitos Hippies, né?

Aqui? não. Nem fazia ideia. Aqui não é muito agitado pra eles?

É sim. Por isso você não os vê mais tanto, no auge do movimento em 70 eles todos fugiram ou pra baixada ou pro interior. Foram viver outra vibe, longe daqui e desse caos todo.

Será que os irmãos mais novos deles se tornaram os Punks que picharam a consolação? - Instiguei.

Provável- Me assentiu com um riso de canto de lábio. Tomei um ar sem tentar chamar a atenção e perguntei:

Qual é a sua relação com os Hippies, você parece gostar bastante, né?- Ela me riu.

Sabia que você ia perguntar isso. - me parecia madura para me responder- Eu gosto da “vibe” deles, eu não consigo me encaixar na ordem que a gente vive. E eles acolhem. A realidade pede muito e dá muito pouco, tudo passa a ser uma pressão desmedida, em todos os cantos que você caminha tem uma norma te esperando- dizia com entusiasmo- por ser menino, por ser menina, por estudar, pelo quer que seja…. isso me cansa como nada nunca me cansou. Quando eu chego em casa depois de horas de condução e estudo, eu me sinto sufocada porque não mais tenho condições para ser eu, fora o cansaço, independente do que esteja pensando ou sentindo eu logo,, sou reprimida pela expectativa de algum amigo, parente ou professor…pior há quem seja esperado pela endividamento do banco... Sei lá, de algum chefe e quando se repara não se sabe mais quem é aquela pessoa no reflexo do espelho. - Tomou um xote de ar, voltou- Eu não faço parte de comunidade nenhuma, até por que sabe-se lá como iriam lidar com isso… Mas quando eu me visto assim, eu logo me sinto liberta, sabe? eu estou envolta da liberdade para ser quem eu sou e isso me alimenta a ter orgulho de assim andar e assim ser. Nessa diferença toda eu ganho a oportunidade de ser eu mesma, fugir das pressões e do mal estar de ser descontente consigo. Minha mãe me entende bem, no fundo acho que ela sente o mesmo. A minha sandália (me apontando para baixo) foi até ela que deu...acho que foi um sinal- Parou e finalizou- Não sei se você consegue entender- continuo caminhando...

Anestesiado por tanto conhecimento recém digerido, eu queria entendê-la, até afirmei que sim, mas a realidade é que não entendia, apenas muito tempo depois teria a capacidade para conseguir entender tudo o que ela queria me dizer e ainda não estava pronto. Éramos tão jovens…. A noite penetrou em nós dois. Mas minha história vem aqui se finalizando, mas ainda digo a você que me lê que unidos caminhamos para a Avenida Paulista, sempre que me recordo desse dia tenho o impulso de pegá-la pela mão, mas ainda não tinha essa confiança em mim. Chegando na paulista, as luzes dos grandes prédios coloriam nossa noite, ainda confidenciamos coisas que não podem ser ditas, rimos de coisas que apenas nesse dia mereciam risadas. E depois voltamos, passo por passo à Paranaguá e Antônia. Nessa noite que pouco antes foi uma tarde alaranjada, eu ganhei meu primeiro beijo, mas isso não cabe a mim contar. O que tinha pra ser dito da minha história já foi dito. Posso finalizar dizendo que nessa noite ganhei muito mais que um beijo, e depois, como um ciclo, perdi. Foram tempos meus caros leitores… e tempos que não mais voltam. Não mais voltam e não mais precisam pois foram eternos.

“O amor é a alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”.

Spinoza

Ramatìs
Enviado por Ramatìs em 23/01/2020
Código do texto: T6848295
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