TRÊS HISTORINHAS DE SAUDADE
Terminava seu serviço as quinze horas e um pouquinho mais...E depois saía do seu esconderijo no porão da loja,e olhava o salão com as estantes brilhando com as embalagens;as gôndolas que podiam até tremer num braço mais pesado que se encostasse.
A tarde era alta como o sol e ainda havia o horário de verão...e tudo iluminado em fogo e entregue à um pouco de solidão.
O calor nas paredes roubavam o cheiro dos frascos,que empalideciam.
Mas era com o céu em chumbo denso que gostava de virar as costas para tudo como se nunca mais precisasse voltar.E ia embora como se os saltos dos sapatos – se tivesse! –fosse fazer barulho na chuva que ainda nem caíra.
A rua estava sempre com um movimento “alegre” e apressado,e no viaduto logo (o que encarava todo dia )já perdera um ônibus,pode ver.
Casca...dura? Da onde viera este nome? Indagou-se quando se sentou à cadeira perto do balcão do botequim.Na falta do que pedir,pediu um cafezinho(o cheiro o apetecera).Se escondia, dos amigos retardatários,fingindo não os estar vendo.
O cafezinho era bem quente e a xícara é que queimava a língua?Uma xícara que nunca vira igual.Uma xícara branca e pequenina,com uma cinta azul na parte de cima.
E ainda se tomava café em xícaras,em Cascadura pelo menos.
Era noite,ventava muito e a chuva não veio porque o frio aumentou.
E pensou com muita convicção:nunca mais vou voltar...E o tempo que se passa não volta,não volta(se a razão fosse apenas esta).O fato é que ele não ia voltar,ele não ia voltar nunca mais.
Por um motivo que bem mais tarde ele nem soube qual:voltou;e apenas reconheceu as paredes,porque foram as mesmas que achara ter reconhecido antes,bem antes de ali trabalhar;as gôndolas pareciam fora de equilíbrio mas como se outras tivessem nascido e não aquelas mesmas que ele ajudou a arrumar.
Do resto não conseguia se lembrar:aprendera,achando-se suscetível,que a vida não valia guardar ódio.
Sentia-se bem embora triste.As quinze horas e um pouquinho e daí mas duas horas sem fazer nada,com um tempo livre para ficar pensando – ele se recordava tanto disso como a certeza que estava vivo.
Os frascos tinham seu cheiro mesmo – era a distância que fazia isto.Enquanto se era muito próximo as coisas pareciam sempre pálidas – com vergonha – como ele achara que foram outrora;agora voltava como antes a bela impressão “desaproximada “ das coisas.
Casca-dura tão próximo de Jacarepaguá e tão longe de Belford Roxo.
A casca aqui é dura muito dura...
Não tem ódio no coração,apenas uma vontade felina de “ser”.
Sua casa,seu modo de ser,seus intervalos,seus sonhos foram todos assim acelerados e moídos,disto sabe,e está tentando coar;tranqüilizar e amenizar.Quer que cada gole dure um pouco mais,dure o mais;não,o certo é que dure o que é certo.
Fez um plano esdrúxulo ontem e hoje:planejou algo com muito sentido.
Se a noite tivesse grilos,ele dormiria pensando apenas em acordar.Só que a noite era cheia de barulho de automóveis e berros de socorro no fim da rua.E era o pensar fundo algo que explodia necessário como o respirar;e acontecia das vezes estar debaixo d’água.E como ficava?E várias noites se afogara.
Despediu-se para sempre,com a consciência da sua fragilidade,sem nenhum rancor...
E agora?
Começar tudo de novo e com a mesma dócil suavidade de antanho.
Pode ser o caso de procurar uma bandeira!
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UMA HISTÓRIA MUITO MAL CONTADA.
Olhara a blusa dele combinando com a toalha de mesa:xadrez vermelho-branco;e o olhar lúgubre dele para a mesa,cheia de salgadinhos e doces;era de dar pena com toda aquela misericórdia de si mesmo;e não lhe faltava aquela criançada correndo-lhe ao redor.
O pior era o cheiro das bolas de ar que estavam dependuradas no teto cheio de teias de aranhas,e para disfarçar a gafe ela foi se aproximando da janela,e mandando que ele ficasse a vontade e até se servisse...Mas ele nem a encarou – e na verdade – fora ela que não o encarou,aceitando a gafe.
Olhou a paisagem:o crepúsculo esmaecido de São Leopoldo;e tanto barro no chão da rua.Graças a Deus nem sinal de chuva ou o chão e suas paredes iram ver...
Sua janela dava para um terreno baldio aonde tinha o alicerce de uma casa que nunca chegara ao fim,e o capim-navalha ia crescendo alto.E ela que chegara a sonhar com uma vizinhança:ruim ou boa? Calculando,e aí:vazio,vazio...
Ele a olhava,ela sabia,e parado como uma estátua fincada no chão e aquele copo de suco de groselha na mão esquerda.Coitada!Coitada de mim – pensou rindo,esfregando a cara suada,o coque ridículo já desfeito,o perfume de rosas fenecidas já vencido;e ela sofrendo porque aceitara a idéia da irmã de fazer uma blusa para Ele,e como,como poderia adivinhar que a irmã aproveitaria o pano que sobrou da toalha de mesa.
Agora a gafe,a gafe...ela estava perdida.Ele era o único rapaz – que apesar de não ser bonito – tinha um bom emprego ali pelas cercanias do distrito que iria se emancipar: carteiro!
E nunca recebera cartas:ela também nunca escrevera.Só lia folhetins deste cor de rosa que se compra barato na banca de jornal.A sua casa era toda de um cheiro de mofo e pano velho porque a irmã vivia inventando as costuras;e ela tentaria o crochê.E tentando o crochê ela tentaria um casaco para ele.Quem sabe uma manta.Será que ele usava manta?
A irmã apareceu,com um coque maior do que o seu,trazendo um jarrão de q-refres-ko de groselha – que a criançada avançou em cima – e ela colocando o jarrão ao centro da mesa fora contendo os ânimos dos pirralhos com sua voz de araponga no meio do mato.
Coitada,coitada de mim – monologava e sentia os cotovelos já doendo,ficando ali no parapeito daquela janela;o suor escorrendo de dentro dos intensos cabelos;e a voz de araponga da irmã : Está gostando,está gostando?Quer mais um refresquinho? E o pigarro dele,aquele pigarro seco,que já se revelava tudo:coisa sem graça fazer um convite destes – e o pior disto,que enxugando o suor com as pontas dos dedos,ela não pode mais conter dentro de si: esta blusa ridícula,sobra de pano de toalha de mesa.Que espécie de mulher é esta? Aonde? Me diz em que parte deste mundo eu não encontre criatura tão bizarra quanto está? Tenho que sair deste lugar,tenho que sair deste lugar...
E ela,ela que corria atrás das borboletinhas brancas pelo quintal que se tornava pântano...pensando : Ele bem que podia me salvar,bem que podia me salvar;mas eu estraguei tudo querendo me salvar logo...E agora,e agora?
Começara a música na velha vitrola do tamanho de uma máquina de costura,e o som arranhado parecia sair de dentro de uma mala fechada.Cantava ciranda-cirandinha? Era,era.Mas que voz era aquela? Parecia a voz da Zezé Macedo...
Agora,sentia pena dele – talvez por educado que fosse - suportaria aquilo até o fim.Que grande maçada! E mancada.
Na hora de bater os parabéns: a pequena remelenta em cima da cadeira,só a criançada toda suja se animara junto da araponga de coque imenso,porque a pobre e infeliz donzela escondera o rosto no busto bem coberto,e batia palmas tão fraca quanto o seu sorriso.
Ele continuou parado do mesmo modo e como se mover fosse ainda mais fatal.
Os pedaços de bolo foram repartidos nos guardanapos cor de rosa à todos,e ele recebera o seu ainda absorto e entediado no meio do circulo tétrico,e o copo de suco de groselha ainda intacto – da mesma forma – e ele já por dentro e refletindo por fora:a pesada ironia de si mesmo dentro de tudo aquilo.
O bolo está bom,está bom? Insistia a araponga,sem que ele mal a olhasse;e uma bola estourou logo em seguida de outras mais e o estardalhaço foi total entre choradeiras e risadas de crianças,e tudo ficou ainda menos possível com a araponga ali dentro e uma lá na árvore,na velha árvore que resistia...
Ele se foi...para sempre.A donzela podia escrever uma carta para um parente distante só que para,na esperança da resposta,a carta lhe viesse pelas suas mãos.
Na esperança disto,debaixo daquela velha árvore ao lado da sua casa.ela voltou a ter esperança;mas a voz da irmã veio tinindo de lá de dentro a avisar que a novela já começara.E correu para dentro de casa como que assustada da cigarra.e a dizer por dentro:é hoje que a Cristiane Torloni recorda-se de tudo,e do homem que ama principalmente!
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UMA HISTÓRIA MUITO BEM CONTADA!
Ele se sentou à calçada do Natural,e ficou sentindo o cheiro quente dos galetos assando e sendo cortados;o caminhão de lixo parado tão próximo.O mau cheiro não atrapalhava o cheiro que apenas queria identificar,que era o cheiro da sua fome ou simplesmente o cheiro da sua vontade de comer.
Com as mãos espalmadas nos joelhos,viu e identificou suas unhas sujas,sua calça vermelha-viva e encardida,suas botas brancas – de negras que deviam ser – por causa da poeira;então limpou uma unha na outra na tentativa,e assim abandonando as luvas de borracha no chão mais encardido que sua roupa.Coçou-se nos poucos pêlos encarapitados ao decote da blusa tão vermelha-viva quanto a calça.
Evitava os olhares,que por acaso,pudessem nota-lo,e devia aceitar fácil que lhe dissessem que ninguém queria olha-lo,porque ele não era nada;e isto se via no seu sorriso resignado e quase de paz.
No momento ele pensava no galeto perfumado e quente quase ao seu lado.E só simplesmente em sonhar fácil ele se achava livre do peso do mundo,porque ninguém acreditaria mesmo que fosse capaz.Então não fazia o menor esforço.Antes afastava da mente a menor possibilidade.
E do instante que notou alguém,a atravessar o sinal,o notando ali na calçada,fez de imediato um jeito infantil de quem fareja o aroma de comida mas tinha uma pontada insignificante de mágoa no seu coração.E se pudesse existir alguém na rua que o olhasse como quem olha qualquer pessoa? Podia existir,só que ele não diferenciava por causa da mágoa antecipada e porque cuidava em afastar da mente a densa possibilidade ainda maior.
Tinha a severa e disciplina consciência de se portar assim enquanto a sua função exercia.E neste momento ele não descansava? E cuidava de ocupar o tempo com algo que aparentava “maior”.E farejava como um cão o desejo supremo à libido.
Não era – duvidosamente - de pensar em amor,e vinha logo a ânsia de amalgações,se esta palavra sinalizasse-lhe a mente e fizesse bater forte o coração.Era preciso evitar a força natural de ser um Ser Humano,e deveras se matutava sobre o caso de,vinha-lhe o medo de uma solidão ainda maior ou um pejo de ser quem era e podia ser naturalmente.Sem esforços.
Bateu-lhe afinal uma fraqueza forçada e corajosamente riu,escondendo o rosto nos braços cruzados sobre os joelhos,e riu de si mesmo,e bem lá no fundo do que a tanto custo tentava evitar em si mesmo.Tinha medo de ser ridículo sendo um ser humano,e assim se fazia passar por animal como a tantos outros que desciam da estação,atravessavam o sinal sem olhar à favor de quem,ou que devoravam frangos e chopes à troco de tíquetes e paciência...
Sentiu uma leve carícia no cabelo encarapitado à lhe desarranjar o boné,e abrupto apresentou rosto assustado ao mundo:cadê? Quem? Aonde? – e o mais íngreme e pontiagudo – por quê?
Aliviou-se ao ver que os colegas já se penduravam a balaustrada,e o gozando chamavam-no...O caminhão partiria a cata dos lixos da dita cidade;e ele correu então, ágil a pegar as luvas que estavam no chão:então vocês...E os alcançou como alcançou o caminhão a se pendurar na balaustrada,na mesma revolta algazarra de estar vivo como os seus comparsas...
Então esqueceu...esqueceu mesmo? Que tinha vontade de comer.
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AUTOR: Rodney Aragão