Conto das terças-feiras – O Farol de minha infância

Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 21 de janeiro de 2020.

A primeira vez que visitei o Farol do Mucuripe, senti uma sensação estranha, ambiente pesado. Uma estrutura de forma octogonal, de alvenaria e ferro, localizada entre as: Latitude Sul 3º, 45'10" e Longitude Oeste de Greenwich 38º,35'9", mais precisamente na cidade de Fortaleza. O original, construído por escravos, a mando de D. Pedro, foi terminado em 1846. Em 1869, um incêndio destruiu a sua torre e lanterna, sendo recuperadas alguns meses depois, restabelecendo-se a iluminação do farol, ainda que de forma precária. Reconstruído sobre a torre antiga o farol foi reinaugurado em 1872. Essa construção durou 85 anos e representa, até hoje, uma das mais antigas edificações de Fortaleza.

Na ocasião da minha visita, em 1952, deparei-me com estranha figura, um velho marinheiro, vestido em seu surrado uniforme branco, parecia ter sido cabo – duas faixas -, barbudo, careca, magro, queimado pelo sol, usava velho boné. Eu estava sentado na areia, apreciando o mar e fazendo planos para o futuro (?), era uma visita com a família, conhecer um patrimônio histórico do Ceará, assim falou meu pai. O homem, em seus passos claudicantes, aproximou-se pediu licença para se juntar a nós, dei de ombros, a areia da praia não era minha e o espaço era imenso. Que mal fazia ele também apreciar a beleza que estava à minha frente? Percebi que ele não oferecia perigo, além disso, minha família, eu sabia, me vigiava.

Por alguns instantes o velho marinheiro ficou calado, olhava o infinito, acho que tentando trazer à memória, fatos que ele deixara sob aquela imensidão de mar. Murmurava palavras desconexas, às vezes baixinho outras aos gritos, o que fazia meu pai olhar, vendo que tudo estava bem, continuava explicar para os irmãos mais velhos sobre o que ele conhecia daquele monumento. O homem continuava ali, fazia gestos e caretas, de sofrimento e de dor. Às vezes sorria de satisfação. Eu nada compreendia, tinha apenas oito anos, pouco sabia do sofrimento e das alegrias dos outros. Só sabia que ele estava perturbando o meu futuro, minha concentração para poder formular um plano de vida para mim – que pretensão, naquela idade!

Passados dez minutos o velho perguntou se eu queria ouvir uma história sobre o mar, sobre a guerra no mar. Respondi que ele podia contar, eu estaria ouvindo, sempre gostei de ouvir histórias, depois ficava vivendo-as como se fossem comigo. Minha curiosidade era aguçada, queria saber como era o mundo segundo os adultos. Virei-me para a figura de branco, para ouvir o que ele teria para me contar.

— Você está vendo aquele navio ali, menino? perguntou-me. Eu fixei o olhar naquela máquina surgindo no horizonte e esperei que ela ficasse sob o meu contato visual. Era uma possante máquina, um belo navio.

— Eu já trabalhei em um desses, um navio de guerra. Fui convocado para lutar na Itália, II Guerra Mundial, salvar aquele povo. Eu era canhoneiro, manejava um canhão do navio. Estava preparado para matar ou morrer, é assim em tempo de guerra. Nosso comboio partiu do Rio de Janeiro, dia 22 de setembro de 1944, o nosso era um navio americano de transporte de tropa, inicialmente costeamos o Brasil – o homem não parava de falar, parecia que as palavras/lembranças jorravam tal qual água de cachoeira. — A paisagem era bonita, de sol quente, estão juntos muitos homens sentados no chão, o espaço era pequeno, havia treinamento com metralhadora, barulho infernal, tiro real. O alvo eram sacos de pão pendurados em um avião que sobrevoava as nossas cabeças. Os canhões também atiravam. Na passagem pela linha do Equador houve festa com distribuição de cigarros. Comemorei meu aniversário no navio, o mar estava calmo como um rio, o comboio mudou de curso repentinamente, havia submarino e cruzador lançando bomba de profundidade, eu estava no canhão com outro marinheiro, num momento que me afastei por algum motivo que não lembro, um torpedo atingiu o nosso canhão de 152 mm, o meu amigo foi pelos ares, fiquei surdo por algumas horas, passamos pelo Estreito de Gibraltar, avistamos algumas cidades da Itália, desembarcamos em Nápoles, chovia, navios destruídos, miséria, cidade sem luz, confusão, deixei o navio, não voltei mais, depois de muito tempo percebi que estava aqui, vigiando esse belo farol. Algumas vezes o homem parava para respirar e logo continuava falando, era um louco(?), não saberia dizer! Foi difícil guardar tudo o que ele dizia, mas foi emocionante. Aquele homem simples sofreu para salvar a humanidade, não perguntei sobre o amigo que voou, não era assunto que ele desejasse recuperar.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 21/01/2020
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