Os três lados da moeda

“Certas coisas à nossa volta vão mudar, ficar mais fáceis ou mais difíceis, uma coisa aqui, outra ali, mas nada jamais será diferente de verdade.”

Raymond Carver

Jonas acreditava que a existência de um milhão de problemas prova que há um milhão de soluções. Observe, dizia para os amigos mais próximos, a falta de grana é um grande problema, entretanto a solução é nos privar do que a grana pode comprar, ou seja, quase tudo. Com este pensamento e um sorriso nos lábios Jonas não se cansava de dormir muitas vezes no escuro e com fome.

Apesar dos percalços, a juventude que habitava seu corpo era apaixonada pela vida. Quando surgia algum problema menor ele o expulsava a pontapés, metaforicamente falando. Fez isso, vez ou outra, com algum amigo deprimente que insistia em acompanhá-los nas baladas noite a dentro. Nessas ocasiões costumava dizer: sorria e venha conosco ou fica aí sozinho chorando.

Havia dias e noites que ele próprio, talvez seguindo o conselho dado a outros, preferia ficar horas no parque ou nas ruas apenas observando as pessoas passarem. Depois, enfiava as mãos nos bolsos e os fones nos ouvidos e saía assoviando baixinho. Era regra fazer isso sempre que ia procurar trabalho. Depois de cada entrevista de emprego frustrada retornava para casa cantarolando para disfarçar o ódio. Chegou a perder as contas das músicas que assoviou.

Tinha uma certeza pétrea que a linha que separa a tristeza da alegria é muito fina. Quando se via triste a ponto de chorar se trancava no seu quarto minúsculo de pensão e, diante do espelho, observava o percurso de uma única lágrima grossa, quente e salgada escorregar pelo rosto e fazer cócegas no canto do nariz. Nessa hora principiava a sorrir aos golinhos. Em seguida, gargalhava para as paredes mudas do quarto e para o peixinho no aquário. Uma única lágrima, dizia para si mesmo, de um corpo que tem setenta por cento de água, é pouca coisa.

Nas mensagens de celular que trocava com a mãe que residia no interior ela o incentivava dizendo que tudo ia dar certo, que não desanimasse. Mesmo quando tudo vai mal para uns vai bem para alguém, ela teclava otimista. Procure sempre que puder, ser esse alguém, a mãe escrevia. Ah, Jonas, já ia me esquecendo: se não puder sair de casa com as pessoas certas é bom que saia com o pé direito. Sorrindo ele respondia que uma superstiçãozinha não faz mal para ninguém. Boa noite mãe, Jonas dizia enviando um coraçãozinho e enviando outro coraçãozinho ela dizia boa noite.

Certa manhã, após acordar de uma noite aprazível, disse em voz alta para convencer a si próprio: Hoje, especialmente hoje, só preciso de um sinal de que tudo vai dar certo. Correu para o banheiro e em cinco minutos estava pronto. Pegou a pastinha de currículos e alisando bem a mecha que encimava a ampla testa dirigiu-se à rua, mascando chicletes e ajeitando o fone de ouvido. Na rua, não demorou muito para que o ônibus surgisse.

Entrou, passou o cartão e assentou-se no que considerava o melhor lugar: aquele que tem o acento mais elevado. Estava escolhendo uma playlist apenas com músicas boas, recheadas de mensagens positivas e ritmo alegre. Assim que terminou de escolher Jonas viu, no banco da frente, um menininho de olhos extremamente verdes e rosto sardento que o encarava como um gato encara um pássaro. Ficou retraído com a fixação do olhar do garoto. Então, virou o rosto para o lado e repetiu mentalmente a pergunta. Será que hoje tudo vai dar certo? Quando voltou o rosto viu os dois polegares do menino levantados em sinal de positivo.

Pronto, pensou ele, era o sinal que esperava. Já poderia descer e, em qualquer loja, entregar o primeiro currículo do dia. Desceu feliz e pisou o chão como quem pisa a areia da praia num dia de férias. Sorrindo percebia em todo lugar o verde da esperança. Até no rosto cinza das pessoas e na calçada de paralelepípedos cobertos de poeira via o verde que prenunciava a vitória.

A última coisa que viu - antes de voar pelos ares - foi o verde rápido do semáforo. Nos segundos seguintes um carro desenfreado o pegou de raspão e o arremessou contra um muro descascado e sem cor.

A multidão que acorreu ao local não compreendia aquele sorriso jocoso em um rosto repleto de escoriações. Os que chegaram mais perto ouviram, antes de ouvir a sirene dos bombeiros, uma música que escapava baixinho de um dos fones de ouvido. O refrão soava: Everything is gonna be all right. As pernas de Jonas debatiam-se em espasmos. Se alguém não soubesse o que havia acontecido poderia imaginar que elas quisessem dançar.

Parado no meio da multidão um menininho sorria. A mãe o puxava pela manga da corinthiana camisa. Não queria que ele presenciasse mais aquela cena, muito menos queria que as outras pessoas notassem a sua cara de felicidade.

make
Enviado por make em 17/01/2020
Código do texto: T6843867
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.