O MENINO NA CADEIRA DE RODAS
Charles chegava mais uma vez da sessão terapêutica, eles o trouxeram numa cadeira de rodas e enquanto todo o aparato familiar lhe resguardava, alguns garotos espreitavam a cena a distância entre as arvores do jardim.
Sofia, mãe de Charles logo fechou a porta, colocando o pequeno rapaz no seu quarto. Seu Pai era empresário e sua mãe uma médica cardiologista renomada. Charles era colocado toda tarde na varanda para apanhar sol, ao que as pessoas passavam e ficavam olhando, algumas diziam aos seus filhos:
-Olha lá o menino na cadeira de rodas!
Charles na verdade já havia se acostumado com aquilo, contudo era algo que ainda lhe afligia a alma [...]
Neste dia Charles não quis tomar sol e foi logo colocado em sua cama tendo a porta balcão aberta adiante de sí, ao longe uma paisagem fabulosa, o céu azul cintilante e a praia distante com ondas breves e espumantes sob um sol esplêndido.
Sua mãe entrou no quarto tendo um pequeno bolo na mão, era seu aniversário. Ela e seu Pai e seu pequeno irmão cantaram para ele e partiram o bolo, mas Charles não esboçou nem um sorriso sequer, nem tampouco provou o bolo. -Vamos filho- disse a Mãe- comemore hoje é seu aniversário!anime-se!
-Não tenho o que comemorar mamãe, me deixe só!
Eles saíram sem intererrogar-lhe, Charles já era assim desde há muito, agora com 13 anos de idade parecia mais amargo e introvertido, parecendo mergulhar profundamente num mar de obscuridade e tristeza; seguia sua rotina de ir as sessões terapêuticas e as aulas curriculares que tinha em casa, aulas de piano e literatura, mas sua vida era limitada a uma cadeira de rodas e a uma cama. Seus pais, muito protecionistas o mantinham numa redoma, distante de tudo e de todos. Cercado por maus pensamentos oriundos daquela vida improfícua, ele fechou os olhos e tentou dormir.
Sem perceber, Charles estava sendo vigiado e enquanto pegava no sono, três garotos entraram no seu quarto furtivamente e pegaram o bolo, quando iam saindo ele disse: - Auto lá! de onde vocês vieram?
Assustados os garotos estacaram próximos a saída da porta, um deles nervoso disse: - Bem, nós estavamos com fome... e-e vimos o bolo que você não quis comer, então p-pensamos em...come-lo por você!
-Ora bolas, podem ficar com este bolo, não ligo a mínima pra isso, m-mas de onde vocês são?
-Somos daqui da redondeza, estavamos jogando bola e vimos você chegar, e pensamos em pedir agua, mas sua mãe fechou a porta.
-Não sei como os empregados não viram vocês entrar aqui!, mas enfim, me conte como é jogar bola! acho muito legal, mas vejam!
Charles descobriu as pernas que pareciam tortas e finas, explicou que já havia feito algumas cirurgias e fazia tratamento, mas desde criança jamais conseguiu andar, mas ele tinha um sonho que gostaria de fazer a todo custo, chutar uma bola! Mas suas pernas fracas não suportavam seu peso, ele também queria ver a praia, mas seus pais jamais o permitiram! Os garotos sorriram com o rosto borrado de chantily do bolo. Teco disse: -Ora bolas, eu acho que a gente pode dar um jeito! Charles fez amizade com aqueles garotos e pediu para voltarem outros dias.
Seus Pais não viram com bons olhos a aproximação daqueles jovens adolescentes com rosto e mãos sujas de terra, roupas em frangalhos e cabelos desgrenhados, mas Charles se sentia bem com eles, afinal nunca tivera amigos.
Sempre que chegavam os empregados eram instruídos a leva-los aos banheiros para tomarem banhos e trocar roupas, além de receberem uma boa alimentação que comiam na sala junto a Charles, uma reunião sempre muito animada.
Com o tempo, Charles ganhou a confiança dos servidores da casa, e enquanto seus Pais saíam, ele era conduzido até a rua de terra para assistir aos jogos dos garotos, levavam muitos lanches e sucos e distribuíam para a garotada, um dos empregados ficava sempre o acompanhando.
Havia um Senhor chamado Anselmo que treinava o time que se interessou por Charles, e enquanto ele ficava na rua conversava muito com ele, descobrindo suas angustias e principalmente seu sonho.
Anselmo passou a fazer alguns exercícios com ele, enquanto os outros jogavam, os empregados com o tempo passaram a deixar Charles com Anselmo, e próximo a volta dos Pais iam pressurosos busca-lo.
Numa certa manhã em que seus Pais foram viajar com seu irmão, Charles pediu para seus empregados o deixarem só, na verdade ele havia combinado com seus amigos em ir até a praia!
O Sr Anselmo o levou até a beira da Praia e o deitou na areia com a ajuda dos meninos, o sol tocando sua face, a pele em contato com a areia, tudo parecia tão natural, uma sensação que nunca sentira...
Sempre acompanhado dos amigos, ele se sentia melhor e já não ligava tanto para os olhares que lhe dirigiam na praia, nem mesmo na sacada.
Passaram-se uns seis meses, e o Sr Anselmo, incansável aposentado de educação física, insistia com Charles, seu trabalho de fortificação de sua musculatura era contínuo.
As festas de fim de ano passaram e Charles fez questão de presentear seus amigos, sua mãe havia mandado adaptar um quarto nos fundos para recepcionar seus amigos da rua(como ela chamava) não queria mais ve-los na sua sala!
Apesar da truculência de sua mãe, a festa foi animada, o Sr Anselmo trouxe algo que parecia uma prancha de surf adaptada, e pediu para Charles deitar-se nela, com ajuda dos amigos ele se deitou sem entender, seu corpo e pernas foram amarrados num colete preso a prancha e um cinto de segurança, Anselmo disse:
-Levei um tempo para adapta-la pensando em você meu amigo, agora vamos fazer algo, espero que goste!
-Sim, mas o que? vão me levar pro hospital?
-Claro que não! -disse Teco- vamos lá, vamos ergue-lo!
Começaram a erguer a prancha perpendicularmente, havia um apoio na base dela, Charles foi erguido lentamente até que ficou de pé!
Primeiramente sentiu uma tontura leve, mas depois passou a vislumbrar algo incrível! a emoção de sentir-se em pé!
Ainda que amarrado, aquela sensação trouxe-lhe lágrimas aos olhos, intensa alegria que foi cortada com a presença de sua mãe que pôs um fim a festa:
-O que pensam que estão fazendo com meu filho?
Meses mais tarde, apesar da oposição dos Pais, a amizade de Charles com seus amigos frutificava, incansável o Sr Anselmo buscava novas técnicas de tratamento para seu problema, sem contudo obter resultados satisfatórios. Resignado, Charles crescia apesar das intempestivas amarguras que lhe solapavam a alma.
Apesar dos contratempos, era uma pessoa sensata que estudava bastante, e consumia livros com frequência.
Alguns anos mais tarde, Charles passou pela terrível experiencia de perder sua mãe, seu Pai já havia abandonado a família há alguns anos e compareceu ao velório para falar com o filho e propor-lhe ir morar com ele, mas Charles preferiu continuar na casa, onde uma empregada que já o servia há anos residia também.
Charles havia herdado uma boa fortuna que permitia-lhe tranquilidade para o resto de sua vida, mas não era isso que ele tinha em mente.
Com 24 anos de idade, e a presença dos amigos fiéis, ele fez um concurso público, passou e iniciou seus trabalhos num tribunal em pouco tempo. Lá encontrou uma pessoa especial, Rebeca que como ele havia passado no concurso público, uma mulher discreta e sensata. Mais tarde ambos se apaixonaram e em pouco tempo se casaram . Suas limitações eram ainda algo difícil de suportar, contudo seguia adiante fortalecido com a palavra de Deus que aprendera recentemente, onde Deus prometia que em seu futuro Reino todos seriam sarados e não haveria mais tristezas, nem dor, nem lágrimas.
A primavera havia voltado há cidade ao que parecia após alguns anos, mas Charles sabia que não era assim. Ao ver crianças tentando brincar na rua de futebol ele teve uma idéia, procurou o departamento de obras na prefeitura e fez um requerimento do que antes era um antigo lixão, hoje um espaço ermo onde depositavam velharias.
Após o sinal verde, a prefeitura foi ao local o transformando num belo lugar, ali Charles construiu duas quadras, uma delas apenas para futebol e fez uma parceria com o Sr. Anselmo e seus amigos que o apoiaram na formação da entidade, um clube esportivo. Sr. Anselmo que estava desempregado receberia um salário para cuidar do time de futebol.
Na tarde de inauguração do clube, Charles pediu licença de sua repartição pública e foi até lá para prestigiar o evento.
Pessoas se apinhavam na entrada, o Sr. Anselmo compareceu com os amigos, mas entre as pessoas que permeavam a quadra havia um menino numa cadeira de rodas, o rosto delgado e a expressão de expectativa, Charles aproximou-se com os outros, logo estava diante do menino que mal notara a presença deles.
Ao vê-lo, Charles lembrou-se do seu passado, sonhos e realidade se degladiando diante dos seus olhos. O menino parecia querer saltar na quadra, as pernas trôpegas balançando, os olhos acesos; Charles se via como há muitos anos atrás... Quando então o menino percebeu que estavam alí, Charles lhe perguntou:
- Olá menino, onde estão os seus pais?
O garoto meneou a cabeça e apontou com o dedo, dizendo:
- Está alí. É meu avô.
- Que bom- tornou Charles - É sempre bom ter alguém conosco. Bem mas você gostaria de jogar?
- Sim, mas não posso! - respondeu secamente o garoto
Seu avô se aproximou ao ver a cena:
-Olha só que ótimo- disse o velho ao tragar um cigarro - Outro cadeirante querendo jogar? Seria bom se pudessem, sinto muito.
- Não precisa sentir nada amigo, nós vamos jogar sim...
O velho ficou boquiaberto, Charles disse ao menino:
- Hei, vamos lá na quadra, o acesso é fácil!
- N-não, eles vão nos xingar moço!!
O Sr. Anselmo se aproximou e com seu jeito bonachão disse ao garoto:
- Pode ir com ele rapaz, ele é o dono disso aqui!
Um grande sorriso floresceu no rosto do menino que alvoroçado foi atrás de Charles. Chegou próximo ao centro da quadra e Charles pediu para lhe darem espaço, os dois iriam começar o jogo!
O avô do garoto deixou o cigarro cair da boca ao ver o menino dominando a bola com sua cadeira de rodas. Momentos depois o Sr Anselmo o ergueu e ele deu um toque na bola com seu pé esquerdo, visto que o pé direito ele não tinha. Foi uma grande comoção quando o menino sorridente viu a bola entrar no gol, sob uma extensa salva de palmas... Charles falou brevemente ao garoto sobre seus planos, pediu a bola e a entregou ao menino que a abraçou forte, segurando-a com força, como se fosse um pássaro querendo voar, não queria deixar que aquele momento perecesse, de fato ficaria com ele até o ultimo dia da sua vida...
As vezes a alegria mais sincera vem das coisas mais triviais da vida, as quais não damos a devida atenção no tempo apropriado.
Fim.