No colo do mundo
“Precisamos decidir como podemos ser valiosos, em vez de pensar em quão valiosos somos.
F. Scott Fitzgerald
Aquela boa e fértil terra vermelha que cobriria - alguns dias depois - o caixão de dona Isabel, agora descansava sob um manto verde de grama. Pássaros cantavam felizes ou infelizes nos jardins e nas gaiolas do mundo.
Enquanto isso, Isabel cultivava lindas e atrevidas roseiras que cresciam próximo ao muro e avançavam os braços espinhudos em direção à calçada. Muitas vezes ela esteve a olhar pela janela com orgulho de suas flores. Outras mulheres passavam admirando o seu roseiral.
Por momentos ficava feliz ao saber que poderia dar causa à felicidade de alguém. Momentos depois descobria, a contragosto, que muita gente nem sequer a conhecia, porém conhecia o seu jardim. Às vezes, de posse desse saber, entristecia. Não só por isso, mas porque começou a desconfiar de todos aqueles que queriam se apossar da beleza sem ter que trabalhar para merecê-la. Descobriu-se, depois disso, desprezando muita gente.
À tarde, quando o sabiá-laranjeira emitia os seus costumeiras acordes, Isabel irrigava os seus canteiros. No céu o sol passava através dos galhos e das folhas fazendo com que a terra úmida adquirisse, sob seus dedos, um calor quase humano. Isto lhe proporcionava um enorme prazer.
Entre o manejo da tesoura, do rastelo e do ancinho ela sabia que a vida é ação e todo e qualquer prazer ou desprazer advém de uma genuína dose de ação. O que acontece, pensou Isabel, é que o prazer é igual à saliva que quanto mais se retém na boca, mais ele aumenta. A grande questão na minha idade, concluiu ela, é como cultivar o prazer e, se possível, dividi-lo.
Fez isso. Redescobriu-se como agente de sua própria vida. Parece simples, mas não é para a maioria das pessoas. Isabel plantou, cultivou, deu e vendeu flores na feira ou na porta de casa. Sabia que as flores, mormente as rosas, não eram apenas plantas: era um conjunto de tempo, trabalho, suor e afeto. Era vida.
Isabel passou a ser um corpo visível no mundo. Passava a ser também uma grande resposta a tudo que a rodeava. Dava conselhos, palpites e sugestões: era um ótimo exemplo. Mas, como corpo vivo era uma pergunta, um questionamento ao mundo. Estudava suas rosas e livros sobre rosas: era uma senhora que se preocupava com as pessoas e o caminho dela e delas no mundo.
Sabia - por ter lido em algum lugar - e por ter ouvido há tempos sua avó e a mãe de sua avó dizer que as mulheres de sua família, no passado, viviam da floresta e de tudo o que ela poderia dar, enquanto seus filhos e maridos saíam para caçar. Por ora, a única floresta que lhe restou, no século XXI, é o seu estimado jardim. Ele não lhe oferece mistérios, nem remédios para os males do corpo, mas oferece beleza para seu espírito, sendo assim um refrigério. Para os males ou para a fome do corpo há um postinho de saúde no bairro e há ainda as amigas e os encontros semanais do grupo da terceira idade no salão de danças.
Às vezes, Isabel preferia ser como os jovens a quem o mundo poderia pertencer um dia, em vez de ser alguém como ela de quem ele poderia escapar a qualquer momento. Em seguida a esse pensamento ficcional e abstrato ela opunha outro mais concreto e real: não se pode ser dono do mundo - ilusão juvenil - e ele, o mundo, não nos escapa - ilusão metafísica. Jovens e idosos só podem viver dentro do mundo e dentro do mundo morrer. Não há saída, só entrada.
No entanto, depois de um tempo Isabel partiu como partem as estações. Para as outras pessoas, que não ela, a partida foi como uma manhã de inverno. Num dia você passa pela varanda dele e lá está o seu amigo ou amiga lhe acenando a mão; no outro dia você vê apenas a cadeira de área abandonada e sente o vazio da ausência dele ou dela. Mas, aquele aceno fica repercutindo dentro de você e para fora de você por muito tempo.
Foi esse aceno que fez com que algumas pessoas acompanhassem o velório e sepultamento de Isabel. Alguns miravam o buraco, a cova com sua boca escancarada para o mundo. Outros, os mais próximos, viram bem mais que isso: viram uma semente humana entregue ao canteiro do mundo. Ainda ouviram uma sinfonia de pardais nas árvores que ladeavam o cemitério.
O buraco, o abismo estava agora com a boca fechada, e o caixão enfim, coberto com sete palmos de boa e fértil terra vermelha. Se Isabel pudesse dizer algo para alguém, ela diria que o que está em aberto é a vida e sua multidão de desafios. Aceitá-los é viver. Ou cultivar rosas, o que dá no mesmo.