Querida Marílis viúva
Narrarei, caríssimo leitor, sobre uma mulher chamada Amarílis. Mãe solo, estava desempregada, tinha três bocas para sustentar devido ao triste fim dado ao próprio marido no Morro em que moravam na cidade do Rio de Janeiro dos anos 80. Mais de 10 anos separam o início e o final dessa história.
Homem negro, alto e charmoso, Amarílis o conheceu durante seus tempos de ginásio. Casou e morou com ele por 10 anos, ele aos 20 anos e ela aos 19.Assim como Amarílis, Amadeu Souza Batista não nasceu em berço de ouro. Para sustentar seus filhos e a esposa, trabalhava todo dia, de sol a sol e assim raramente deixava faltar comida e roupa em casa. Fazia diversos tipos de entregas, de comida a mudanças intermunicipais.
Naquele ano, 1981,a família pretendia se mudar do Morro das Figueiras, perto da Praça XV, para um lugar mais seguro.
Volveremos nossa atenção a um dia em especial, o aniversário de Amadeu, quase final de novembro, dia 18/11/1981,um dia antes do Dia da Bandeira.
Ele voltava do serviço a pé. Ao abrir a porta da pequena casa de alvenaria simples, uma euforia tomou conta dele. Sua família e os vizinhos tinham organizado uma festa surpresa, que iniciou-se antes das oito da noite. Se comeu, bebeu, confraternizou e dançou até perto de duas horas da madrugada.
Quando Amadeu foi se despedir dos últimos vizinhos, houve o terror.
Por trás do homem o ceifador, um tiro de fuzil, manchando a roupa dos últimos convidados e deixando todos da localidade perplexos e revoltados.
Aconteceu que ninguém sabia que a polícia ia fazer uma batida nas bocas de fumo, nos bailes ilegais e em todo o perímetro que cercava a casa da família de Amarílis.
Estouraram a boca que ficava por detrás da sala de estar e invadiram sem piedade aquela propriedade privada de amor conjugal e fraternal.
Amarílis escondeu seus filhos no quarto dela e correu com eles para debaixo da cama.
Após não sentir mais sinal de perigo,a mulher sai do quarto
O que vê lhe apavora e atormenta seu espírito de mãe e esposa.
Seu marido fora vítima de uma execução sumária legitimada pelo Estado, em plena comemoração aos 30 anos de vida, o que era para ser uma festa acabou se tornando um pesadelo amargo e grotesco para Amarílis.
Dois anos após a tragédia, nenhum apoio familiar ela recebeu. Os vizinhos ajudavam como podiam, às vezes com comida e às vezes levando as crianças na escola.
Em pleno verão, no dia 12/03/1984,Amarílis tem uma entrevista de emprego, para pleitear a vaga de diarista em um apartamento localizado em Ipanema. Ela era uma mulher de estatura mediana, sua pele era a de uma negra não retinta, contrastando com a pele retinta de seu finado esposo. Os cabelos da nossa protagonista eram cacheados em um tom tão escuro que chegava a ser quase azulado. Eram mais ou menos seis da tarde quando a entrevista começou.
A patroa dela seria a tal da dona Carmelita Araújo de Mello:
-Qual seu nome e idade, menina?-começou a entrevista a futura empregadora
- Meu nome é Amarílis Souza Batista de Almeida e tenho 31 anos-apresentou-se então Amarílis.
-Você parece ser boa gente, apesar de negra e já quase quarentona-Esse foi o comentário de Carmelita sobre a candidata.
-Obrigada-agradeceu quase chorando pelas palavras da mulher, Amarí.
-Você tem filhos ?- perguntou dona Carmelita a aquela "negra que parecia ser boa gente".
-Sim senhora. Três, dois meninos e uma menina-respondeu a candidatura a sua entrevistadora.
-Que pena, querida. Eu preciso de você de segunda a domingo. Não posso ficar com você porque tu tens muitos filhos “-rebateu aquela senhora branca que desde o início parecia não querer dar um emprego a uma negra de mais de 20 anos.
-Mas.... senhora eu preciso muito desse emprego, meus filhos quase passam frio- se lamentava em lágrimas Amarílis
- Não temos condições, passar bem e você está convidada a se retirar -friamente nas palavras Carmelita expulsava a candidata ameaçando com a linguagem corporal chamar os seguranças.
Saiu daquele antro muito triste e desolada a recém viúva mulher. O que haveria de fazer para sustentar suas crias ? Sucumbir ás mulheres "da vida" ? Que destino a vida dela tomaria?
Voltou a casa. Ainda era aquela no Morro das Figueiras.
Falou a sua filha menina, Kiliah, que não havia conseguido a vaga
A filha consolou a mamãe:
-Calma, mamã Rílis, que vai achar loguinho um trabalho bom...-falava com candura a menina a sua mãe
-Claro, meu amor, mamãe vai dar o jeito-respondeu Amarílis a sua filha, menina que puxou os cachos da mãe e a determinação da mãe, junto com a simpatia e a doçura do finado pai.
Três dias depois de ter procurado outros empregos, em 15/03/1984 enfim chegaria uma boa notícia.
Amarílis fora contratada por uma confeitaria em Botafogo para trabalhar no setor operacional, assando bolos e ajudando os padeiros a fazerem tortas.
A partir do trabalho de confeiteira tudo foi prosperando. Quatro anos depois, em 1988 alugava um pedaço de um apartamento perto do Humaitá para morar com seus filhos mais velhos e a caçula , Gavin , Malawi e Kiliah.
Se tornara sócia da confeitaria, partilhando dos lucros junto com o patrão, Monsieur Louis Bourbon
Mas no ano seguinte, em 1989,o patrão queria ofertar-lhe uma pequena miséria contábil :30% de toda a receita da empresa, sem participação ativa nos lucros.
Ela não se contentou. Terminou a antiga parceria com o dono da confeitaria.
Amarílis então decidiu abrir uma barraca de confeitos própria na rua atrás da confeitaria.
Ao passo de dois anos, faturava mais na sua barraquinha do que trabalhando de carteira assinada para confeitaria.
Conseguiu manter uma vida abastada em alimentação para os seus filhos e até aquele momento da vida não se relacionara com ninguém além de Amadeu.
Foi no ano passado, 1994,que um cliente muito fiel lhe chamou atenção pela beleza e gentileza. Parecia já avistado ele em algum lugar, em algum espaço de tempo não recordado. O nome dele era Cássio e se assemelhava ao primeiro grande amor da sua vida. Namorou o rapaz por três meses e casou com ele dois meses depois, em 15/05/1995. Hoje, caríssimo público, 16/07/1995,essa mãe Amarílis é muito feliz, junto dos seus filhos (os dois mais velhos, Gavin e Malawi, atualmente são, respectivamente, jornalista e chapeleiro) e o seu esposo Cássio, que abriu uma loja para a esposa. Depois de tantas batalhas na sua vida terrena até aqui, a nossa protagonista confeiteira pensa em graduar-se em Pedagogia e incentivar sua filha Kiliah, atualmente com 15 anos, para que a mocinha possa ser uma contadora de histórias no futuro.