Manhã na Vila Paulistinha

Claudete era a mais devotada dona de casa da Paulistinha. Pelas manhãs, já achava-se demasiadamente atarefada, metida na monotonia de sempre. Corria para lá e pra cá, cuidava de organizar o lar e disciplinar as crianças. Entrava na sala no meio do serviço para ter com dona Quitéria, a matriarca da família, refestelada a um canto e perguntar-lhe como ia o membro dianteiro, que já não desempenhava as plenas funções de outrora. Tudo isso e mais. Vigiar Júnior, o mais velho, que habitualmente tentava galgar a rua em sua ausência.

As manhãs na Vila Paulistinha eram frescas, de uma suavidade ímpar,

ensolaradas e barulhentas - mas nem por isso intranquilas. Ao terminar os afazeres do lar, Claudete ganhava a rua na esperança de conseguir alimento. Ia a pequenos, mas rápidos, passos . Arquitetava um plano cansada, mas com ligeiro ar de contentamento. Afinal, isso também fazia parte de sua rotina, esgueirava-se aqui e ali por pequenas frestas a fim de subtrair comida de algum transeunte apressado ou vendedor de banca distraído.

Os raios de sol penetravam por entre as copas das árvores, a brisa leve carregava o sensível aroma das guloseimas da padaria do outro lado da rua. Outro dia corria melodiosamente ao som dos pássaros da Paulistinha. Claudete, aninhada a um canto, e atenta a todo e qualquer movimento junto às proximidades do perímetro que ocupava, observava obstinadamente os passantes.

Pela rua pouco movimentada e esburacada, que fazia frente a Vila Paulistinha, passava uma senhorinha. Era baixa, de sorriso amável e passos resolutos; carregava sacolas robustas de frutas. Que graciosa criatura! Claudete não se atreveria a surrupiar aquele ser, tamanha era a doçura de seu olhar. Fitaram-se por alguns instantes, até que a cativante velhinha atirou-lhe uma uva. Claudete ficou estarrecida, enquanto sua benfeitora partia para horizontes desconhecidos.

Uma uva! Ah… Jamais Claudete havia experimentado a doçura da benevolência humana naquela medida. Sua face tornou-se radiante e as frestas da boca abriram-se num sorriso emocionado. Aquela senhora deveria ser um anjo. Sim! como nas histórias fantasiosas da velha Quitéria. Era diferente daqueles seres mesquinhos e cruéis que geralmente passavam por ali, por vezes ignorando-a ou tentando esmagá-la.

Ainda com a uva agarrada à boca, ocorreu-lhe um pensamento inquietante. Deveria ela desfrutar ali mesmo, solitária, do presente celestial ou repartir com os seus? Como era a mais bondosa das catengas e a mais devotada dona de casa da Paulistinha, carregou o fruto - como que tesouro - dentro da boca salivante até o lar.

Em casa, encontrou tudo como sempre estivera. As crianças brincando de luta no quarto, dona Quitéria a cochilar na sala inerte, e Júnior tentando escapulir pela janela outra vez.

Assim eram as manhãs na Paulistinha, repletas de afazeres monótonos e graças divinas.

Sabrina Gomes
Enviado por Sabrina Gomes em 20/12/2019
Reeditado em 20/12/2019
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