A cerveja e o sorvete

Dizem que na narrativa devemos priorizar a ação ou a verticalidade da personagem. Não sei o que queriam dizer com verticalidade. Definitivamente não deve ser algo relacionado à estatura. Releio um conto de Lovecraft e imagino quanto daquelas loucuras que ele imaginou no continente Antártico tem algum fundo de verdade. Os Antigos e suas guerras interdimensionais contra os filhos de Cthulu e os Mi-Go. Gosto da sugestão do conto que diz que provavelmente o governo dos Antigos tinha uma base socialista. Eles são extintos no final.

Checo a geladeira e se acabaram as cervejas. O tempo (ou a mente) prega peças na gente de vez em quando. Chove demais lá fora para o fato de sair a pé não ser considerado insanidade. Milagrosamente há cinqüenta dinheiros na minha carteira. Quando a chuva passa, visto uma calça surrada (no começo do ano era nova, maldita obsolescência programada!) botas e uma camisa com tantos furos quanto uma fatia de queijo suíço. Uma força inexplicável e arrebatadora me guia ao velho bar de sempre. É metafísica a coisa, não é o mais limpo, não é o mais barato, não tem as melhores pessoas, mas lá me sinto bem.

As horas passam gordas e lentas e tudo se sucede como se naquele local o tempo também tivesse dado uma pausa em seu trabalho para beber uma cerveja. Enquanto eu medito tentando prever se chove ou não, uma mulher desce a rua puxando uma criança pela mão enquanto manda um áudio pelo celular. A criança me vê antes eu a reconheça.

— Papai! Papai!

Solta da mão da mãe e corre em minha direção. A progenitora ralha.

— Volta aqui moleque! Não acredito! Hank, você não tem vergonha?!

Levanto-me da mesa e o menino pula nos meus braços. Está cada dia mais pesado.

— Papai, me compra um sorvete?

— Não tem sorvete no bar, pestinha. Pode ser um chocolate?

— Tá bem... Mas amanhã eu quero um sorvete!

A mãe intervém.

— Compra logo esse chocolate que eu tenho mais o que fazer. Não quero saber do meu filho freqüentando esses botecos que você se embebeda e...

— Quer um copo querida?

— Vá se foder Hank.

Rio. Percebo que ela também acha graça, mas não vai dar o braço a torcer. Em dois minutos o garoto já devorou a barra de chocolate e sujou metade da camisetinha. Balança as perninhas suspensas sentado na cadeira.

— Quero água.

O dono do bar serve um copo americano com água limpa para o menino. A mãe está de pé na calçada fumando um cigarro enquanto bate ritmicamente com o pé direito fingindo pressa. Acaba a água.

— Pronto, já comeu e tomou a água. Dá um beijo no seu pai e vamos que eu não posso esperar o dia todo.

Os dois vão embora. Acompanho-os com o olhar até virarem a esquina. Os Antigos de Lovecraft se reproduziam por esporos, mais ou menos como as samambaias. E o que isso tem a ver com o cotidiano da vida real, eu não faço a menor idéia.

Rodrigo Margini
Enviado por Rodrigo Margini em 13/12/2019
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