À espera dos bárbaros e o último suspiro do desespero
Você não vai acreditar, disse o coveiro à esposa ao voltar depois do mais sombrio dia de trabalho em dezesseis anos desde que assumiu o posto no cemitério municipal.
No que eu não vou acreditar? Devolveu a esposa sem espanto, pois em nenhum momento levantou a cabeça ou parou de lixar as unhas do pé.
Sabe a família morta ontem que parou a cidade e que enterrei hoje?
Hum.
Foi o pai.
O quê?
Foi o pai. O pai matou a esposa as duas filhas e o menino.
Jesus, gritou ela. Agora jogou a lixa e pedaço de algodão para cima e cravou os olhos no marido que tremia feito bambu ao vento.
Jesus pouco tem a ver com isso, mulher. Aliás, disse o marido, Jesus é esperto e está muito longe daqui, esqueceu que Ele ainda não esqueceu a última vez que esteve aqui? Sabe do que mais?
Pare de conta-gotas, homeopatia não vai ressuscitar ninguém.
Tudo bem. Ele, o pai desesperado, deixou a carta em que explicava seus motivos e o maior deles foi a preservação de sua unidade e tradição familiar.
Pare com isso homem, vá tomar banho e descansar, aquele desgraçado matou crianças.
Ainda não terminei. Ele, o pai desesperado, disse que preferia arder no fogo do inferno a ver uma de suas filhas de burca e hijab, de joelhos no chão e bunda para cima, e mais, muito mais: seria o horror dos horrores ver crianças com aquela toquinha horrorosa na cabeça a chamá-lo de “Baba” e aos berros de “Allahu Akbar, Allahu Akbar”. Disse no final da carta que em quinze anos o mundo como conhecemos não será mais o mundo como conhecemos e não queria estar aqui para presenciar a hecatombe.
Tem sopa quente, vá tomar banho, descansar, disse a esposa enquanto procurava a lixa de unhas para terminar sua hora de pedicure. O que é “hecatombe”? Perguntou depois de encontrar a lixa e pegar novo pedaço de algodão.
Mulher, você me escutou? Espero que não tenha feito ouvido de mercador, pois se ele estiver certo, a gente não tem outra escolha: o recado está dado, a gente não vai poder dizer que não foi avisado.
A esposa agora lixava a unha do dedo mindinho e levantou a vista, como quem espreita a fuga.