DE CORPO E ALMA
Como no Minotauro ou algures sobre o mar Egeu em voo rasante perdera o rasto dos animais mitológicos e só, em casa, fechado no escritório, à secretária, ele imaginava as ondas que vinham rebentar junto ao areal da praia imensa e em que tentava divisar debalde e mais uma vez a figura de apolo saído do banho e depois de uma relativa perda de controlo, aos tombos apanhado pelo vento norte.
O que se teria passado realmente durante aquele ano com aquele sua personagem virtual tão longe e estranhamente tão próxima?
Sabia pouca coisa.Ele deixara o seu posto, rebelara-se contra algo , voltara costas à carreira prevista e decidira fazer o que sempre quisera mas que não tivera oportunidade ou coragem para realizar antes.
O Livro.A Obra.Afinal um homem só cumpre a sua vida quando faz um filho, planta uma árvore e escreve um livro.Não é isso que reza a tradição popular?
Procurou reconstituir a história…o que mudara radicalmente nele e o que nele permanecera? Um período intenso de fotografia.Paisagens de uma fazenda, corpos, dorsos, pernas e pés.Ele próprio sensual, de costas só com uma camisa flutuante e de rabo ao léu a apreciar o horizonte selvagem.
Nos intervalos talvez de certeza, houvesse convívio colectivo, climax, combustão lenta e explosões múltiplas.
“Ah no fundo meu tão misterioso amigo que se expõe tanto e por outro lado oculta um lado invisível, para onde caminhas, que estranhas sendas buscas?”Cada vez mais confuso e com dúvidas, incapaz de traçar certezas acabou por se conformar em ir compondo um puzzle de mil peças para reconhecer o outro , talvez um ser em constante mutação.
No seu próprio pequeno universo tão previsível e esquematizado, tudo se desenrolava de acordo com princípios, costumes, regras e geometrias.O oposto absoluto.Um alter ego.
- Não, hoje vou ficar em casa, de vigília, a ler um livro de Poesia.
- De quem?
- Não conheces.Brasileiro.
- Mas que misterioso.Que sigiloso.
-É.
E nessa noite mergulhou na leitura, no espaço onírico daqueles versos e daquelas ondas tão cheias de música e dôr e gostos e vivências com acrósticos e anáforas, figuras, estilo…um mundo vibrante de criação com uma vida palpitante por trás.
Horas depois.
- Estou?Boa noite.Então já terminaste?
- Já.
- E então?Gostaste?
- Fui envolvido…completamente. Pelas palavras, como que transportado a uma espécie de limbo.Experiência fascinante mas ainda não consegui desnudá-lo.
- Desnudá-lo?Mas porque raio é querias ver o poeta nu?
- Uma maneira de falar!Preciso da tua ajuda.Podes encontrar-te comigo?
-Agora?Mas são duas da manhã.
-Precisamente.A hora.
- Bebeste a mais?
- Não.Posso contar contigo ou não?
- Espero que seja mesmo importante.
- Deixas o carro no lugar do meu.Vamos até à Baixa.
- Fazer o quê?
- Subir o Chiado.
- Se me prometeres que segunda-feira marcas consulta urgente para um psiquiatra. Ok, estou nessa.
Deixaram o carro no Parque dos Restauradores e começaram a subir a Rua do Carmo e depois a Garrett.
-Já Imaginaste o Eça de bengala a calcorrear este passeio?
-Já imaginei que podemos ser assaltados a qualquer momento.
-Já estamos quase.Muito perto.
- Perto de quê?
- Da Brasileira.
- Mas fechou à meia noite.
- Da estátua do Pessoa.Aqui!
- E agora?
-Agora eu abro o livro como se estivesse a mostrá-lo a ele e tu tiras uma fotografia no telemóvel.
Um vagabundo passou e olhou-os com desdém, havia muito pouco trânsito àquela hora.A sessão fotográfica durou cinco minutos.
-Deixa ver.Ai, meu Deus, eu fico tão mal nas fotografias!Não sei.Não sei se vou aproveitar estas ou ter que repetir tudo num outro dia.
- Neste momento, não tenho dúvidaS.Tu deste na coca.Foi uma promessa?Bem, já está.Fernando Pessoa a ler um livro de poesia de um autor brasileiro com uma capa côr de rosa e tu passaste-te de vez e eu também por vir contigo de madrugada cometer esta loucura.
- Tenho que te agradecer mas nada mais natural do que isto entre melhores amigos.Ou não?Vamos cear?
- A estas horas só nos Bons Amigos do outro lado da cidade.Pagas tu.
Riu pela primeira vez, deliciado
- Claro.Vamos?
Ele rejubilou com aquela loucura.Quando se atravessam décadas de vida por vezes torna-se quase impossível fazê-las ainda que sejam muito pequenas.Mas ele conseguira.E fizera-o… de corpo e alma!