Cardumes

Mais um dia terminava enquanto eu observava através da janela do ônibus da empresa que levavam seus funcionários (os que moravam mais afastados do prédio ou em outros distritos próximos), as luzes da cidade que cintilavam ao fundo da paisagem enegrecida pela noite. Cada luz acesa representava uma casa, uma vida, ou quem sabe mais de uma. Uma família que seja. E eu sempre imaginava durante meus devaneios solitários no banco de couro barato que fedia à água sanitária: O que será que essas pessoas tão distantes de mim estão pensando? Será que elas também estão infelizes e entediadas com suas próprias tarefas, ou eu era o único expectador que não estava confortável com o espetáculo da vida? A resposta nunca chegara até mim, e talvez, nunca chegaria. Mas eu sempre imaginava uma resposta, ou algum argumento que me deslocasse do mundo desconfortável para o coletivo conformado.

“Cardumes”, eu pensava. Sempre me vi como o mergulhador no escafandro que observava os cardumes e sentia-me superior por ter a consciência de fazer aquilo por puro prazer. Mergulhar e observar, sem fazer parte daquilo. O mergulhador depois que sai da água assume seu papel social e vive sua vida em um mundo sólido. Mas agora sou mais um peixe do cardume, esperando o mergulhador aparecer para me observar e fazer com que eu me sinta diferenciado do resto dos outros peixes. Que patético, um homem que não alcançou os trinta e já se sente um peixe fora d’água, mesmo este boiando solitário em um oceano de desilusões.

Antes, numa época em que eu não me contentava com o mínimo, meu desejo era viajar o mundo e ser livre. Liberdade era meu objetivo. Sempre culpei o sistema, o mundo, a sociedade, a família ou a mim mesmo pelos meu fracassos em alcançar tão pífio desejo, ou melhor dizendo, um sonho clichê. Hoje, voltando para a casa depois de um dia de trabalho cansativo, empurrando a roda capitalista, ou acariciando a mão invisível do mercado (nunca sei como me referenciar à essa expressão que não faz sentindo algum pra mim), vejo que a liberdade é mais complexa do eu imaginava. Somos livres pra poder pensar o que quisermos, mas limitados no fazer. E o que poderíamos de fato fazer se fôssemos realmente livres? Liberte um peixe do aquário e o coloque no oceano. Minutos depois este estará flutuando na superfície da água com os olhos secos e mortos como se dissessem mais ou menos: “O que aconteceu?”.

Um pé brusco no freio do ônibus me traz de volta a realidade. A primeira parada. Olho ao meu redor e reparo em meus colegas (os que ainda não desceram). Alguns dormem, outros conversam em voz baixa (imagino que sobre o dia de trabalho, ou o comportamento idiota de algum líder de produção, ou sobre mulheres que passam por suas vidas), outros possuem os rostos revelados pela luz branca da tela de seus celulares recém comprados e divididos em dez parcelas na Loja Cem. Não tenho celular. Na verdade odeio celulares. Celulares nos empurram para as redes sociais, e redes sociais são armadilhas para a autoestima de qualquer pessoa. Por isso o nome “Rede”, a armadilha para os peixes do cardume. Essa associação sempre me faz soltar uma risada abafada.

Sempre desconfio que qualquer coisa possa ser uma armadilha. Se me oferecem algo de segunda mão para a venda, eu logo penso “deve ser alguma armadilha”. Acho que por isso me sinto tão solitário, pois se o mundo é uma arapuca gigante, é impossível escapar dela. E se você acha que pode escapar, uma distância entre você e as outras pessoas surge para te destruir por dentro. A solidão é um veneno potente, mas que reage em seu organismo de maneira lenta e delicada. Primeiramente seus efeitos quase não são notáveis. De repente você se vê confortável em sua solidão, feliz por olhar ao redor e não ver ninguém para te encarar friamente nos olhos e jogar na sua cara os seus fracassos. Mas com o passar do tempo você começa a desejar que alguém apareça na sua frente, como num passe de mágica, e lhe diga o quão fracassado você é. Daí então, você terá motivos suficientes para desejar tomar um rumo em sua vida, por meio da luta ou por meio da desistência total. Mas sozinho é foda pensar em qualquer ato de absolvição ou luta pela vida. E da mesma forma que você deseja a solidão, o veneno desse discurso retórico (ou qualquer merda aristotélica do tipo) começa a fazer com que você queira mergulhar com as outras pessoas na realidade e sentir a água salgar sua boca amarga.

O ônibus faz sua segunda parada. Um homem e uma mulher descem juntos. Lembro então do meu primeiro dia de trabalho na empresa. Meus pais ainda eram vivos e eu morava com uma mulher que hoje eu nem sei mais em que bar ela se afunda em álcool para fugir de seus pensamentos suicidas. Nem sei dizer se ela ainda está viva. Espero que sim. Meu amor por ela era grande o suficiente para fazer com que eu nunca refletisse sobre as luzes cintilantes na escuridão noturna. Mas amor puro não sustenta relação. O tempo passa tão rapidamente que quando você percebe, a mulher dos seus sonhos é alcoólatra e você perde o tesão de querer beber uma cerveja num fim de semana sem querer que a bebida em seu copo se torne um espumante de cianureto de potássio. Mas é claro, parte disso é minha culpa. Eu não soube lidar com meus próprios anseios, assim como ela não soube lidar com os dela. Tomávamos os mesmos antidepressivos. Era até legal, pois economizamos muita grana comprando dois por preço de um na farmácia que de pisos grudentos ao lado de nossa antiga casa.

Depois da separação eu voltei para a casa dos meus pais, que já não estavam mais ali. Assim, voltar para a casa depois de um longo dia de trabalho era pior do que o próprio longo dia de trabalho. Mas com o tempo você se acostuma com o veneno da solidão. Dói, mas um dia todo mundo morre e essa dor passa.

No começo eu nem sabia do que reclamar. Era liberdade total, chegar em casa e não ter ninguém para te lembrar dos boletos e nem uma mulher em coma no sofá com um bilhete de despedida que sempre era reescrito pelo menos uma vez por ano. Só faltava o meu escafandro, pois eu era o mergulhador. Mas logo percebi que a vida é um ciclo interminável de fracassos, e então decidi ligar o modo automático e só desligá-lo dentro do ônibus, pois assim eu economizava energia.

Outra parada. A última. Era minha vez de descer. Comigo, outros colegas descem e me acompanham até certo ponto da rua onde nos separamos. Depois eu sigo sozinho para a casa, refletindo sobre a existência de vida fora da terra ou se o homem realmente pisou na lua. Neste momento eu ligo o que eu chamo de “modo reflexivo da conspiração auto-sabotadora”.

Entro em casa e o silêncio é quase ensurdecedor, como sempre, o que me faz acender todas as luzes e ligar a televisão o mais rápido possível. Abro uma lata de cerveja barata e me sento no sofá velho para assistir a programação noturna de sexta feira. Minha lata está na metade quando uma reportagem sobre a vida dos cardumes de uns peixes esquisitos do atlântico começa a ser transmitida no clássico globo repórter. Me acabo na gargalhada antes de desligar a Samsung de segunda mão (que felizmente não foi uma armadilha, pois a coisa funciona muito bem) e ir para o chuveiro sem terminar minha cerveja. No banho, meu maior dilema começa: Devo continuar? Todo o dia era como um jogo mortal de uma única pergunta de uma resposta de sim ou não. Hoje eu decidi sim. Mas qual será minha resposta amanhã? Então choro mais uma vez antes de dormir sem ninguém para me escutar...

(Guilherme Henrique)

PássaroAzul
Enviado por PássaroAzul em 07/12/2019
Reeditado em 09/12/2019
Código do texto: T6813171
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.