TUDO O QUE EU NÃO POSTEI

(PROJETO PERFIL)

A primeira foto que postei foi de uma festa que fui com o meu marido. Lembro-me que eu estava loira e sorrindo. O sorriso foi o motivo de eu ter postado a fotografia. Meu perfil no instagram era recente, essa era a primeira foto compartilhada. Nunca gostei de redes sociais e foi a minha profissão, eu sou professora de língua portuguesa, que me obrigou a aderir a essa modernidade. Todos os meus alunos estavam nas redes sociais e, portanto, eu não podia ficar alheia a elas. Embora, os livros fossem meu passatempo favorito, a internet devia fazer parte da minha vida.

Recebi muitos comentários. E quanto voltei a sala de aula, após o fim de semana, a minha postagem era o comentário favorito dos alunos. Eu não vou mentir, sentir-me feliz. Não que eu seja superficial, mas foi bom perceber que as pessoas se interessavam por mim. Mesmo assim, demorou um pouco até eu postar minha segunda fotografia. Só fiz isso três meses depois durante minhas férias, quando fui com meu marido e minhas duas filhas para praia. E depois da segunda postagem, viciei-me. Postei eu na igreja com minhas filhas. Fotos do meu gatinho. O passeio romântico com o esposo. Pensamentos e frases que me encantavam. Eu passei a postar quase tudo. Era agora uma internauta.

Não tinha percebido. Mas estava me tornando uma pessoa superficial. Passei a dar importância a acontecimentos rasos, como o fato de perder o momento com a família fotografando para postar em meu instagram. Comecei a sentir necessidade de compartilhar minhas conquistas e frustações: muito feliz pela homenagem da Universidade a mim. Férias! Filhas se divertindo. Participação em congressos. E muitos acontecimentos que antes eu vivia, passei somente a compartilhá-los, pois se não postassem eu tinha a sensação de que aquilo não estava acontecendo.

Praticamente abandonei meus livros. Até quando decidia ler, sentia a necessidade de fazer um stories para mostrar para as demais pessoas que eu estava lendo. Aquele momento que outrora era um momento meu comigo mesma, passou a ser um momento de interesse coletivo. Eu queria que todos vissem que eu estava lendo. Por quê? Eu não sabia explicar, mas sentia essa necessidade. O celular era agora uma extensão do meu corpo. Como consequência da necessidade de compartilhar, veio a minha compulsão por fotos, mas necessariamente selfies. Eu havia me transformado em uma professora descolada, e por ter muitas turmas tinha também muitos seguidores. Porém o conteúdo que eu compartilhava era incoerente com o que ensinava na Universidade.

Em sala de aula, eu ajudava a formar professores de língua portuguesa. Há quase 10 anos havia passado no concurso público para professora efetiva da UFCG – Universidade Federal de Campina Grande, e atuava no campus de Cajazeiras, como professora do Curso de Letras. Toda minha família tinha orgulho de mim. E meus alunos me queriam muito bem. Digamos que eu tinha um ótimo relacionamento com meu emprego. Afinal, eu amava de paixão o que fazia e valorizava minhas conquistas. Não tinha sido fácil chegar naquela função, antes disso tinha sido professora da educação básica da rede estadual da Paraíba.

Naquele dia, os cliques eram feitos em razão da minha aprovação no doutorado. E antes mesmo que o jantar, oferecido por meu esposo em comemoração à minha aprovação, terminasse eu já estava compartilhando as fotos no meu instagram. Ele nunca havia dito nada em relação a essa minha compulsão de compartilhar tudo. A festa se estendeu para a universidade, meus colegas me abraçavam, parabenizando-me. Meus alunos ficaram felizes e tristes ao mesmo tempo, pois eu sairia de licença para fazer o doutorado. No entanto, prometi-lhes que viria para a formatura de todas as turmas que concluíssem o curso antes do meu retorno.

Dessas comemorações e homenagens resultaram mais postagens em minhas redes sociais, que eram agora três: instagram, facebook e whatsapp. Passada exata uma semana do meu afastamento do trabalho, comecei a me sentir mal. Meu marido até brincou que isso era a falta da rotina de muito trabalho. Claro que era brincadeira, por mais que eu gostasse do que fazia, não iria adoecer por falta de trabalho. Aliás, nem sei se isso é possível. Já vi pessoas adoecerem por excesso de trabalho. Por falta de trabalho, essa seria a primeira vez.

Viajei para João Pessoa para dar início ao meu Doutorado. E lá decidi procurar um médico. Fui diagnosticada com câncer nos ovários. Pasmei... Mas mantive a postura. De volta ao apartamento de uma colega de trabalho, onde eu ficava hospedada quando ia a capital, tranquei-me no banheiro e chorei. Chorei... E chorei novamente. Foi um choro silencioso. Um choro introspectivo. UM CÂNCER? Eu gritava em meu pensamento. E peguei o celular para ligar para meu esposo. Desisti. A tela estava aberta no meu instagram. Fui olhando minhas fotos uma a uma. Aquelas lembranças todas...

Todas aquelas lembranças não me despertaram nada. Tive ódio de mim mesma. Como pude perder tanto tempo compartilhando momentos que não vivi? Como não vivi tantos momentos compartilhando? Eu poderia morrer! E do que me serviria aquelas fotos que nada diziam sobre mim. Lavei o rosto. Tentei me recompor. Sai do banheiro e fui para a varanda do apartamento com um livro. Mas não li. Fiquei olhando lá embaixo os carros passando. As pessoas em um entra e sai no shopping em frente. Crianças brincando. Crianças...

- Minhas filhas! - Pensei de supetão – quem irá cuidar de minhas filhas quando eu morrer? Tal pensamento me veio como um punhal cravado em minha alma. E enquanto olhava as crianças lá embaixo me lembrei dos momentos mais felizes de minha vida. O nascimento delas. Seus primeiros passos. As primeiras palavras. A primeira palavra que minha filha mais velha falou: AMORA. Ri. Nunca tinha entendido porque essa tinha sido sua primeira palavra. Meu esposo sempre contava essa história rindo. E o mais irônico era que ela não gostava de amora. Lembrei-me das noites de sono. Da felicidade de vê-las lendo suas primeiras palavras. Chorei novamente.

Eu tinha câncer! Mas não quis postar isso. Eu precisava contar para a minha família. E o celular que sempre usei para compartilhar tudo não me foi útil naquele momento. Eu tinha que contar para minha família. Mas só faria isso pessoalmente. Fiquei em João Pessoa por mais uma semana. Não faltei a nenhuma aula. E não postei mais nada. Ninguém me questionou a minha ausência na internet, por certo deduziram que o doutorado estava exigindo de mais de mim. Quando na verdade era o universo que exigia que eu voltasse a viver, e tinha me dado um prazo de validade para isso.

Alguns parentes se fizeram de fortes. Outros choraram. Minhas filhas não entendiam a gravidade da situação. E eu segurei o choro quando, de volta em casa, contei para minha família do meu diagnóstico. Eu percebi que teria o apoio de todos. Meu esposo pediu que eu me afastasse do doutorado para fazer o tratamento. Eu me recusei. O universo tinha exigido que eu vivesse e tinha me dado um prazo para isso. Só quando eu ia fazer a quimioterapia era que eu faltava às aulas. No restante do tempo fui tomada por enorme desejo de viver. De viver verdadeiramente.

Foi só quando o meu cabelo loiro começou a cair que o campus onde eu trabalhava ficou sabendo do meu problema. Minhas caixas de mensagens se encheram de incentivos, de carinho, de mensagens de pessoas que diziam estar comigo. Mas elas não estavam. Não sabiam quando eu vomitava após uma etapa do tratamento. Não estavam quando no banheiro eu chorava vendo meus cabelos caírem. Não estavam quando eu desmaiava na universidade durante as aulas e era levada de ambulância para o hospital. Elas não estavam comigo e, por isso, não entenderiam o que eu sentia quando olhava meu rosto no espelho e via a vida deixando o meu corpo.

- A quimioterapia não está funcionando no seu caso - quando o médico me disse isso, senti que o meu prazo de validade estava chegando ao fim. Eu já sentia o cheiro da morte. Decidi raspar o cabelo, pois já não importava para mim a vaidade. Decidi também continuar estudando. Cuidando da minha família. Decidi viver o pouco tempo que me restava. Na pia do banheiro chorava toda noite olhando o meu rosto refletido no espelho, cada dia mais com menos vida. Eu não queria morrer. Não era minha vida o que me preocupava. A dor que mais me dilacerava o peito era ter que deixar minhas filhas sozinhas. Sem mãe. - O que serão delas? – eu pensava.

Recebi uma ligação que interrompia aquele momento de tortura. Eu voltaria a fazer o tratamento. Agora, com novos medicamentos. Arrumei-me para voltar ao hospital, meu esposo, como se quisesse me animar, fotografou-me. Eu estava com um lenço na cabeça. E, apesar de muito abatida, um brilho de esperança dava vida ao meu rosto gasto pela doença e os longos momentos de choro no banheiro. Ele postou a foto no meu instagram. E eu fui agarrar meu último sopro de esperança.

Formei-me no doutorado. Meu cabelo já cresceu um pouco, está tocando em meus ombros. E hoje, tenho muita vontade de viver. Continuo usando as redes sociais, e não permito que as redes sociais me usem. Poderia ter compartilhado essa história no instagram. Mas o livro sempre foi meu maior confidente. O livro conversa comigo e não comenta, não julga, não crítica, não elogia. Fala o suficiente, e me escuta, e me faz voar, e viver, e senti-me viva. Eu não preciso fotografar meus momentos com meus livros. A alma guarda todas essas lembranças e me mostra que eu sou mais feliz quando vivo ao invés de apenas compartilhar.