En el tren

“Pelo espaço, na ferrovia, pouco mais de 60 minutos em travessia!” Pensei, observando os últimos transeuntes que tomavam espaço na estação La Plata querendo entrar no trem prestes a sair. Lá fora, parte da estação em manutenção, espaço antigo recebendo o novo, a acessibilidade e a segurança! Da estação antiga, com marca inglesa nos ferros, pouca coisa resta, senão a forma.

Mal começa a se movimentar o trem, silencioso, rompem os ouvidos os gritos de venda de café e alfajores, até cabos e carregadores de celular. Distante de mim, ouvi um som familiar que identifiquei como alguma canção de Gardel, mas sem lembrar o nome. Estava sentado de costas para o sentido do movimento do trem e via quase tudo dos mais de 30 metros de corredor. Ao fundo, no limite que meus olhos alcançavam, identifiquei a origem da canção. Era um senhor, dos seus 45 anos, aparentemente de alguma etnia primitiva que eu desconhecia. Encerrada a música, estendia a mão querendo recolher alguns trocados do desvalorizado peso de país em crise.

Olhei para o celular, o sinal de dados já desaparecera! Incomunicável e absorto na experiência auditiva enquanto observava a paisagem que rapidamente se imprimia em meus olhos e desaparecia. “Paisagem de silêncios”, pensei! Pequenas propriedades, pouco gado, lapsos de vegetação e plana até onde meu olhar alcançava. Algumas coníferas, genericamente identificadas, alguns gaúchos em seus cavalos, acompanhando um pequeno contingente de “plantação de churrasco” – pensei divertidamente! De fato não havia plantação de mais nada que pasto entrecortado por poucas árvores e ribeirões que deixavam pouco úmida as margens de terra.

Enquanto me perdia na paisagem, aproximou-se o cantor, só, com sua voz a capela. Ao aproximar-se percebi nele algo parecido a um dos meus escritores argentinos prediletos: era um aedo cego! Cantando, repetindo canções à sua interpretação, porém com uma dor que vinha do fundo do coração! Talvez as dores de sua vida ou a sensibilidade de fazer doer as poesias que cantava. De repente, começa uma música para mim bastante conhecida, que ouvi pela primeira vez na voz de Gardel, nas aulas de espanhol com o professor Jorge Miguel. “Mano a mano”...”Rechiflao en mi tristeza, hoy te evoco y veo que has sido en mi pobre vida solo una buena mujer” cantava o poeta sem visão! Minha memória auditiva, emotiva, nostálgica e viajante perdeu-se no tempo de muitas coisas que nunca mais retornam e perdi-me na ausência de razão por alguns instantes! Experiência inebriante!

Com o fim da canção, retorno a mim e vejo a mão estendida, aguardando alguns trocados. Dou-lhe um pouco mais que moedas, que ele agradece, enquanto o trem para em mais uma estação. Intervalo no qual entram muitos músicos com indumentária gaúcha e instrumentos que prontamente organizam num palco improvisado. De imediato, diz o mais velho que vão compartilhar conosco “los recuerdos” e experiências dos poetas que interpretam em música, com voz e instrumentos. Novamente arrebatado em experiência, memórias, sentimentos e reflexões de vida, lida em poetas e vivida em poesia ali compartilhada universalmente. Canções de amor, dor, nostalgia, alegria, histórias tristes na maioria, de amores desencontrados e de vidas sofridas! Tudo se mistura ao que vejo e penso comigo “Isso vai acelerar o tempo da viagem, porém ampliar ao eterno meu tempo de experiência”! E corre o trem, entram e saem pessoas nas estações, enquanto os artistas executam meia dúzia de músicas, lindamente cantadas como se não houvesse amanhã!

Quando dou por mim, caio na razão e já vejo o aglomerado urbano da capital, minutos antes de chegar a “La Constitución”, quando encerram o espetáculo musical e estendem as mãos para receber alguma recompensa! Novamente, alguns pesos a mais para os artistas enquanto chega o trem à estação. Respiro, profundamente, pensando que aquilo nunca mais se repetirá da mesma forma, nem sentido tal qual senti. Para o trem, abrem-se as portas, libera o fluxo de pessoas tomando seus destinos na urbe. Agora senti o cheiro das chipas, anunciadas às centenas, por toda a estação. Levanto-me, desço e caminho, mais lentamente que as pessoas ao meu redor, extasiado e pensante sobre que rumo tomar. Pego o celular, já com sinal de dados, abro o Uber e digito meu destino: Hotel Roma, Puerto Madero! Enquanto espero, ao lado do ponto de encontro, solto a voz, depois de mais de uma hora de silêncio de minha voz: “Un cafe, por favor!”.

Heródoto Poeta
Enviado por Heródoto Poeta em 22/11/2019
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