ROBERVAL E A INTEMPÉRIE
Roberval andava tentando ganhar o sustento como corretor de imóveis, depois de ter sido demitido da fábrica de peças onde trabalhou por longos e ininterruptos onze anos. Tinha uma casa financiada, dois filhos e uma esposa que, com o tempo, foi deixando de lado boa parte das vaidades próprias das mulheres de bem com a vida. Tomava umas com os colegas de trabalho no fim do expediente das sextas, jogava um futebol com os amigos aos sábados à tarde, e assim ia levando essa rotina miseravelmente normal. A única coisa que o animava era ver sua vizinha de frente, recém divorciada, lavando as calçadas aos domingos de manhã. Por ela Roberval nutria certas fantasias deveras picantes, mesmo sem nunca ter recebido em troca sequer um único olhar.
Vinha ele em um fim de tarde voltando a pé do trabalho para casa, como de costume, quando um tumulto que se fazia logo a frente lhe chamou a atenção. Um punhado de gente, de quinze a vinte entre homens e mulheres, esbravejava contra um rapaz franzino, de bermuda e chinelo no pé, camiseta pelo menos dois números maior que o seu. Empurravam-no, xingavam-no, de modo ríspido e vociferante. Roberval foi atraído por tal balbúrdia, e interpelou o primeiro que encontrou pelo caminho:
_O que tá acontecendo aí, parceiro?
_Esse vagabundo tava tentando estuprar uma criança – e sem nem virar o rosto para o indagador, saiu aos berros – mata logo essa desgraça!
Roberval pode assim perceber o ódio chispando dos olhos daquela gente. Viu alguém dar um chute na perna do rapaz, outro dar um soco nas suas costas. Uma mulher enlouquecida veio de frente e deu-lhe um tapa no rosto. E então Roberval viu o pavor estampado na face daquele infeliz. Ele cobria o rosto, tentando se livrar de seus agressores, e entre os berros da pequena multidão ensandecida, Roberval pode ouvir as suas súplicas:
_Eu não fiz nada. É mentira deles. Eu não fiz nada.
Roberval não conseguiu se conter diante daquela situação. Pôs-se entre o rapaz e os outros e levantou as mãos, bradando:
_Gente, gente, pelo amor de Deus. Vamos chamar a polícia. Isso é caso pra polícia resolver. Senão vira barbárie...
Alguns se entreolharam, como que perguntando de onde havia surgido aquela criatura. Mas logo ouviu-se uma voz dizendo: “Queria ver se ia falar assim se fosse com um filho seu”, e foi o bastante para se voltarem com ainda maior ferocidade:
_Mata! Mata!
Roberval tomou um puxão que quase o desequilibrou. Um outro homem agarrou o rapaz pelo pescoço e começou a arrastá-lo para o meio da rua. A tragédia era iminente.
Roberval nunca fora religioso. A última vez que havia entrado em uma igreja foi pra receber o sacramento da crisma, depois de anos de enfadonhas aulas de catecismo, por imposição de sua mãe. Mas naquele momento, na tentativa desesperada de evitar o que acabaria se tornando um linchamento em praça pública, ele levantou os braços e gritou com toda sua força:
_Em nome de Jesus!
E olhando para cima, mãos voltadas para o Alto, completou:
_Misericórdia, Senhor!
De repente, começou a soprar um vento forte, e uma espessa nuvem cinzenta se avolumou no céu. No mesmo instante que uma viatura da polícia parava ao lado, uma rajada do vento veio e arrancou uma árvore pela raiz, e a jogou dez metros adiante. A multidão, menos pela presença da polícia, mais pelo temor do temporal que se apresentava, titubeou e logo acabou se dispersando. Restaram Roberval e o rapaz amedrontado, agarrado às suas pernas.
_Que é que tá acontecendo aqui, porra? Berrou o policial, um sujeito de um metro e noventa, braços grossos, rosto fechado, arma em punho.
Roberval, ainda com as mãos pra cima, tentou explicar:
_Estavam acusando esse rapaz de um crime. Mas eu não tenho nada a ver com isso não, seu guarda...
O policial olhou pra ele com desprezo, e com raiva para o rapaz no chão. E devido à chuva forte e gelada que caía, tratou de resolver logo o problema. Pegou o rapaz pela gola da camisa e o levantou do chão à força.
_Some daqui então – disse para o Roberval. E dirigindo-se ao outro policial que desceu da viatura, completou: Vamos levar esse bosta aqui pra delegacia.
No outro dia, Roberval não viu nenhuma menção de qualquer caso de suspeita de estupro no noticiário local. Só foram reportados os estragos causados pelo temporal do último fim de tarde, o qual já havia sido alertado pela previsão meteorológica do dia anterior. Mas, pelo sim, pelo não, no domingo Roberval acordou cedo, como de costume. Tomou café, fez a barba, vestiu uma roupa e saiu. Nem notou a vizinha que lavava a calçada do outro lado da rua. Foi e sentou-se no terceiro banco do lado esquerdo da igreja, para assistir à missa das nove.