A "CARAVANA" SINISTRA

A "CARAVANA" SINISTRA

Em Beldroegas dos Cafundós, lugarejo recôndito do agreste, amanheceu como há séculos se fazia, com as mesmas carências, solidão, tristeza, desolação... 3 ou 4 cabras magras berrando por sua cota de "xique-xique" ao redor do casebre de estuque e palha sustentados por ripas de taquara, moradia de dona "Zéfa" e seu marido, bem mais velho que ela, "Zé Lino". José Laudelino estava feliz -- se é que isso era possível em meio a tanta miséria -- era "belchior" (vendedor de coisas usadas) e iria receber mais um mês de auxílio do INSS, o famoso BPC. Aquela renda ajudava muito, punha charque e jerimum no antes ralo feijão de corda e permitia ao casal sem filhos comer frango assado aos domingos.

Saíram madrugadinha, a cidade grande ficava a uns 6 ou 8 quilômetros de percurso puxado, estirão sob a canícula, que faziam calados pra não desperdiçar energias. "Zé Lino" pensava em comprar outro jegue, esse pra êle, já estava meio velho para essas longas caminhadas, talvez até uma carrocinha. Para quem vivia isolado eternamente, o burburinho da cidade grande era deveras divertido. O Banco, como sempre, vivia lotado e, já "montado na grana", com algumas mercadorias de primeira necessidade lotando o lombo do burrico, voltavam alegres para o rancho. O sol crestava o solo, lhes porejava a testa e trazia instantes de irritação ao casal cansado... eis que, numa curva da estradinha deserta, surgem 3 rapazes em belos cavalos a empatar-lhes a passagem.

Josefa percebeu logo do que se tratava, mulher prevenida antevira que algo parecido poderia lhes suceder e escondera parte do dinheiro sob o surrado "soutien". "Zé Lino", criado num tempo em que ninguém "mexia" nas coisas alheias, custou a entender o que se passava, não estava acostumado com a "novidade".

-- "E aí, vovô, passa logo o relógio" !

-- "Esse aqui" ?!, mostrando o "patacão" preso à cintura por uma correntinha... "não vale nada, está parado" !

-- "Deixa de graça, sujeito, passa logo a grana"!, e puxou de um belo 32 com cabo de madrepérola, do tipo que se via nas fitas de faroeste do cinema local.

-- "Só por cima do meu cadáver, cabra safado, vou retalhar seu bucho com minha peixeira, verme... morro mas levo pro Inferno 1 comigo" !

Os malandros se olharam espantados e caíram na gargalhada vendo o velhote "ciscar no terreiro" com a faquinha na mão e berrando "venham, demônios, venham" !!!

Dona "Zéfa" -- pra não ficar viúva -- poz-se na frente do esposo e, com uma das mãos nas costas, repassou parte da renda aos vagabundos, que foram embora rindo felizes com a "papagaiada" do ancião. Por sua vez, "Zé Lino" vibrava com sua coragem, que pusera "os amigos do alheio" pra correr. Só quando soube da verdade sentiu o peso do papel ridículo que encenara. Passou os dias macambúzio, silencioso, sem trocar palavras com a esposa, saindo toda tarde e voltando noite alta, sem lhe dar explicações. No mês seguinte Josefa acordou com imenso alarido no quintal, 25 ou 30 machos com foices, facões, enxadas, prontos para uma "guerra santa".

-- "Te aquieta, mulher, são nossos seguranças... perco algum dinheiro lhes pagando o "serviço", mas não perco tudo, 'inda dou uma lição nos desgraçados" !

Dito e feito... voltando do Banco toparam com êles. "Zé Lino", num rompante, rasgou a camisa, expondo o peito ossudo e desafiou que atirassem. Viram o tamanho da encrenca em que se meteriam e fugiram às carreiras. O fato virou Cordel, teve imitadores em outras cidades e nunca mais se ouviu falar em bandoleiros naquelas estradas. O comércio local renasceu, a turba gastava tudo na cidade movimentada... "Zé Lino" virou herói !

"NATO" AZEVEDO (em 14/nov. 2019, 5hs)