Devaneio vespertino
Estava lendo uma crítica de um álbum do Wire, “Pink Flag”. Concordo com a publicação quando diz que é mais legal que o primeiro do Ramones. Graças à rede mundial de computadores faço a audição do mesmo agora. Uma feliz interrupção acontece na programação da TV Cultura na forma de uma linda mulher que toca violoncelo com maestria.
— Papai, papai cadê o Nanquinho?
Meu filho aparece subindo a escada e procurando um motivo pra me tirar do computador e brincar com ele. Fica agitado com música de câmara. Não acho certo pais que obrigam um pequeno a escolher um instrumento em tão tenra idade. A molecada tem mais é que fazer bagunça. Teorias chatas só servem para nós adultos desconversarmos sobre nossos problemas reais.
— Hank, o que aconteceu com a Interneeeet? Alguém grita da cozinha.
— Sei lá, vai ver foi cortada outra vez, se a gente morasse no Japão não tinha esse problema, lá tem wi-fi até em banheiro químico.
— Mal-educado!
A voz misteriosa responde.
— O que tem de almoço hoje?
— Comida crudívora...
Ainda bem que escondi minha pimenta mexicana. Odeio rango insosso. Meu menino tá comendo muita besteira, preparo um pratinho pra ele com bastante beterraba.
— Papai, por que a gente coloca sal na salada?
— Por que tem sódio, camaradinha. O governo achou que era uma boa forma de obrigar todo mundo a ingeri-lo. E, depois de velho, a gente acaba se acostumando a comer sal.
— Não gosto de sódio!
Continua o concurso na televisão com uma sargenta que toca flautim. Militarizaram até a música. Que merda. A manchete do Estadão é o Lula fazendo churrasco no ABC. Que dia é hoje mesmo? Acho que vou escrever umas mentirinhas pra publicar na Vaza Jato, só de sacanagem. Por SMS o Banco Volkswagen me cobra em pleno domingo à tarde:
“ÚLTIMA OPORTUNIDADE DE REGULARIZAÇÃO...”
Pelo jeito os sistemas da IA deles só sabem escrever em caps lock. Deleto a mensagem e fecho os olhos por um minuto. Daqui a pouco a rede Globo transmitirá quinquagésima versão de Peter Pan.
Oportunidade de ouro pra colocar o pequeno pra tirar uma merecida soneca após o almoço. Me preocupo com o fato de ainda ter que mandar mais dez artigos pra universidade até o fim do ano que vem. Por mais ansioso que eu seja, meu ritmo de trabalho é lento.
— Papai... (bocejo) aquele é o Capitão Gancho?
Diz o infante que cochila com a cabeça sobre as mãozinhas espalmadas.
— Sim neném, mas pode ficar tranquilo que o papai tá aqui e solta o jacaré em cima dele se precisar.
— Então tá bom...
Ele volta a dormir.
O azar me persegue, a gatinha do Cello foi eliminada do Prelúdio. Programa bobo... Enfim. Coisas de domingo.