O artista do self

Depois de muito avaliar as perspectivas, Inger decidira-se por escrever uma carta ao irmão, em Kristiania. Não sabia como ele iria receber as más notícias de que ela era portadora, mas ao se despedirem, a havia incumbido de o manter informado sobre como as coisas estavam indo em casa, particularmente no tocante ao pai, um homem rígido e de extrema religiosidade. Para surpresa da jovem, o irmão não respondera a carta diretamente, mas enviara um bilhete pedindo que ela o aguardasse pela manhã no sábado seguinte, na diminuta estação ferroviária de Aadalsbrug. Inger assim o fez, e após uma hora de espera, o viu descer de um vagão de terceira classe, carregando uma valise de couro. Os irmãos se abraçaram, e depois foram sentar-se num banco ao lado da estação para conversar.

- Fiquei preocupada com o seu silêncio - comentou Inger.

- Preferi responder pessoalmente - redarguiu o rapaz, olhar perdido na distância.

- Imagino como deve estar se sentindo... tanto esforço despendido naqueles quadros!

Ele balançou a cabeça, em concordância.

- Eu sempre soube que esse seria o desfecho caso o pai encontrasse as pinturas... ele nunca quis que eu me tornasse pintor, e pintar nus então, é uma verdadeira abominação.

- Todas aquelas moças... - murmurou a jovem. - Elas realmente... posaram nuas?

- Sim - admitiu ele, com um brilho jocoso no olhar. - Eu sou um pintor, e elas, modelos. Nada mais do que isso.

- Mas... você não se envolveu com nenhuma delas? - Insistiu a irmã.

- Crê que o pai tenha imaginado isso e portanto destruiu as minhas pinturas... para me proteger? - Questionou ele, sobrolhos erguidos.

- Essa ideia me passou pela cabeça... - admitiu a irmã. - Veja... papai é filho de um pastor, e nos educou no temor do fogo do inferno. Mas também moramos numa comunidade pequena e provinciana. Que moças daqui tenham posado nuas para os seus quadros, poderia vir a se tornar um escândalo para nossa família.

- Me parece que você está justificando o desatino do nosso pai - retrucou o rapaz, amargurado.

- Não estou - asseverou Inger. - Apenas queria que não tomasse a ação dele como uma crítica à sua arte.

- Está bem. Vou considerar a sua sugestão e tentar não ficar demasiadamente magoado - prometeu.

- Isso é bom, mas me chama a atenção - ponderou ela. - Toda essa tranquilidade... é como se estivesse me escondendo alguma coisa.

Ele sorriu pela primeira vez e pôs no colo a valise que pusera no chão, ao sentar-se no banco.

- Lembra daquela câmera fotográfica que eu comprei quando estive pela primeira vez em Kristiania? Andei fazendo experiências...

Abriu a valise e começou a retirar dela fotografias em preto e branco, impressas em papel fosco.

- Estas fotos são suas... - observou Inger. - Quem as tirou?

- Eu mesmo - afirmou ele, orgulhoso. - Não é incrível?

E enquanto a irmã examinava as imagens, ele comentou:

- Talvez eu possa convencer minhas próximas modelos a posarem para fotos antes de serem retratadas... assim, mesmo que o pai destrua novamente meus quadros, não precisarei fazer novos esboços. Bastará recorrer às fotografias!

Inger o encarou muito séria, enquanto devolvia as fotos.

- Por favor, meu irmão... se vai mesmo levar essa ideia adiante, faça isso lá em Kristiania. Aqui, isso seria um escândalo ainda maior do que o dos quadros que papai destruiu.

- [09-11-2019]