Capítulo 1
Eram duas horas da tarde de uma quarta-feira chuvosa quando o carro de som saiu anunciando pelas ruas de Palácios:
- Faleceu hoje o Dr. Eurípedes Faria Costa. Seu corpo se encontra em uma das salas do velório “O bom pastor”. A esposa, Sra. Heloisa, e as filhas, Ana Cláudia e Maria Julia, convidam a todos para participarem do seu sepultamento que ocorrerá amanhã às 8:00 no cemitério local. A família enlutada agradece a todos que comparecerem.
Enquanto o carro seguia, tocava uma música tão triste que os vivos quase morriam também. E, dentro de pouco tempo, toda a cidade estava comovida com a morte prematura do doutor, afinal estava com quarenta e cinco anos e no auge da carreira como advogado criminalista.
Aos poucos a sala do velório foi ficando tomada. Parentes, amigos, colegas de profissão, políticos, curiosos e até mesmo alguns cachaceiros de plantão marcaram presença. Era mês de setembro, fazia muito calor, as pessoas se esbarravam umas nas outras num entra e sai constante, buscando uma brecha para ver o defunto. O ambiente estava abafado e meio enjoativo devido à mistura de perfumes, suores e flores, além do cheiro forte das essências que passaram no corpo do falecido.
Sentada e prostrada ao lado do marido, estava a Sra. Heloisa, as filhas e parentes próximos. Em prantos e totalmente inconsoláveis, relutavam em entender, aceitar e se conformarem com a morte de alguém tão querido. Heloisa era diretora da escola municipal "Maria Clementina" e, naturalmente, por tal razão, algumas professoras vieram dar-lhe um abraço, ao tempo em que traziam coroas de flores. E por falar em coroas de flores, elas chegavam em quantidades expressivas do foro local, da OAB, da Câmara Municipal, da Associação Comercial, da Maçonaria etc.
Heloisa estava tão atordoada que não tinha condições de notar a presença de todos. Passavam por lá pessoas de diversas faixas etárias, predominando aquelas de meia idade, inclusive muitos vieram de cidades vizinhas onde o Dr. Eurípedes mantinha vínculo profissional. Ela não conhecia as pessoas que conviveram com o marido, fato que a deixava um tanto insegura, principalmente quando se tratava de mulheres. Como seu esposo era bonito e famoso, às vezes se deparava com um medo inexplicável e, de repente, ver à sua frente uma possível amante ou até mesmo amantes, com o intuito de disputarem o defunto com ela. Lembrou-se que, em outros momentos com as amigas, tinha ouvido algumas histórias e relatos de amantes que apareciam bem na hora do velório, trazendo surpresas desagradáveis tal qual a própria morte. De fato, muitas mulheres já tinham passado por lá. Algumas bonitas e atraentes, outras nem tanto, mas todas se portavam com discrição, escondendo seus rostos debaixo de óculos escuros e olhares vagos. Mas para ela, traziam também um quê de mistério sobre quais seriam os reais motivos para estarem presentes.
Comum a todo velório, principalmente aqueles realizados nas pequenas cidades, há uma grande concentração no seu início, dado o impacto da notícia, mas depois, passado aquele momento de muita contrição, há um esvaziamento, considerando que a maioria tem as obrigações do dia-a-dia. No velório do Dr. Eurípedes não foi diferente. Durante a tarde havia poucas pessoas, as quais se juntavam em pequenas rodas espalhadas pelos cantos e conversavam sobre diferentes assuntos.
Já era bem de tardezinha quando algumas amigas aconselharam Heloisa a se dirigir até sua casa, tomar um bom banho, tomar um café reforçado, descansar um pouco e voltar com energia minimamente suficiente para atravessar a última noite ao lado do marido. No início, ela se mostrou resistente, mas depois foi convencida pelas filhas e pelo próprio cansaço físico e mental. Saiu acompanhada de Filomena, uma amiga desde os tempos em que faziam faculdade em Uberlândia. Quando chegaram em frente ao portão, caiu em prantos ao pensar que seu amado nunca mais entraria em sua casa. Aliás, naquele momento, um turbilhão de fatos, imagens e sons relacionados ao Dr. Eurípedes tomavam conta de todo o seu ser. Gestos, olhares, carinhos compartilhados vinham numa velocidade incrível, não necessariamente em ordem cronológica, rasgando seu coração. Ao entrar, parecia que tudo evidenciava a marca daquele homem com quem convivera durante belos dezoito anos. Filomena pediu para que se sentasse um pouco, foi até a cozinha e lhe trouxe um copo de água. Depois falou-lhe com doçura:
- Amiga, seja forte! Procure ser forte por ti mesma, pelas suas filhas lindas e maravilhosas. Seja forte pelo Eurípedes. Separe uma roupa, tome seu banho e. enquanto isso, vou preparar um chá de erva cidreira bem quentinho.
Ela então se recompôs e foi para o banho. Quando retornaram, eram quase oito horas da noite. Assim que viu suas filhas, ordenou que também fizessem o mesmo, ao que atenderam de pronto. O velório agora estava em outro momento. Novamente o fluxo de pessoas aumentou e ouvia-se somente um burburinho. Por isso o pessoal da funerária reabasteceu as bandejas de pão de queijo, biscoitos e bolachas. Recarregaram também as garrafas de café, chá e leite. Era outro momento até mesmo para Heloisa. As palavras de encorajamento de Filomena, o banho e o chá de erva cidreira lhe caíram muito bem. Ela se mostrava um pouco mais tranquila, já não ficava o tempo todo ao lado do marido e procurava dar atenção a todos. De repente, ouviu-se alguém pedindo para que abrissem espaço. Era o Padre Mário e seus auxiliares que vieram trazer uma palavra de consolo. Quando Heloisa viu aquele homem alto, forte e vestido de batina vindo em sua direção, assustou-se. Pensou até que fosse algum ser celestial já trazendo uma palavra de julgamento para ela e sua família. Fez-se um silêncio. O vigário então puxou algumas ave-marias e alguns padre-nossos. Heloisa se sentiu constrangida, pois não se lembrava quando foi a última vez que estivera dentro da igreja. Afirmava-se católica de nascimento, fora à igreja de livre e espontânea vontade quando se casou. Nas outras vezes em que lá esteve, fora conduzida pelos pais no batismo e na primeira comunhão. Terminadas as rezas, o padre leu uma passagem do evangelho, dirigiu uma palavra aos familiares e saiu.
Capítulo 2
Heloisa resolveu tirar licença-prêmio para se recuperar do luto, dar maior atenção às filhas, cuidar do inventário, reorganizar a vida. Com relação ao inventário, não teve com que se preocupar, o Dr. Carlos Eduardo Mendonça, amigo do Dr. Eurípedes, com quem trabalhara durante muitos anos, prontificou-se a cuidar desta parte tão nevrálgica a toda família enlutada. Com relação às filhas, sentiram muito a morte do pai. E era óbvio que assim o fosse. Adolescentes, às vésperas de entrar para a faculdade, a figura paterna era essencial, dando carinho, conselhos, educação e apoio financeiro, condições básicas para uma vida saudável. As duas eram gêmeas, mas tinham comportamentos diferentes. Ana Cláudia era extrovertida, falava bastante, era muito carinhosa e muito emotiva, chorava fácil, fácil. Era mais apegada ao pai. Trocavam mensagens diariamente e, quando ele chegava em casa, o abraçava e o cobria de beijos. Por isso Heloisa lhe dispensou muito carinho e atenção. Já Maria Júlia era introspectiva, mais na sua, não gostava de se expor publicamente, tinha poucos amigos, era mais apegada à mãe. Identificava-se com ela inclusive na vocação, gostava de pedagogia e pretendia seguir a carreira de educadora. Certamente sentia muito, tanto quanto Ana Claudia, no entanto, seu jeito reservado dava à sua mãe a sensação de que era mais forte que sua irmã.
Heloisa se desdobrava para cuidar de tudo à sua volta. Tentava ser forte, mas às vezes tinha os momentos de recaída e se achava chorando pelos cantos da casa. As estratégias adotadas para se reerguer do luto não funcionavam. Frequentemente se via olhando as fotografias, abraçada às roupas do marido, revendo vídeos que fizeram juntos quando viajaram ao exterior, até coisas simples e pequenas adquiriam valores nunca antes notados. Já era noite, ela estava sentada em sua cama e observava o álbum de casamento. A porta estava entreaberta, Maria Júlia se aproximou e perguntou se poderia entrar. Sua mãe fez sinal que sim balançando a cabeça vagarosamente. Sentou-se ao seu lado e abraçou-a carinhosamente.
- Mãe, não seria melhor a senhora sair, viajar um pouco. Fica enfiada dentro desta casa olhando e acariciando tudo que lembra o pai, penso que é pior.
- Talvez você tenha razão, mas só de pensar em sair, afastar de tudo que me leve ao passado, ressoa como traição, ingratidão ao Eurípedes e ao meu coração.
- Não, não pense assim! O papai estará sempre em nossos corações. Tudo o que vivemos juntos, tudo o que ele fez por nós, tudo o que nos ensinou não morrerá jamais!
Ela se acalmou. Maria Júlia fez-lhe uma proposta:
- Mãe! Vamos combinar o seguinte: A senhora vai dormir em nosso quarto durante alguns dias. Assim ficaremos juntas dando força uma pra outra.
- Está bem. Vou dormir com vocês esta noite.
No dia seguinte, bem cedinho, Heloisa resolveu visitar o túmulo do marido. Então, discretamente tirou o carro da garagem e saiu apressada. Foi até a floricultura mais popular da cidade e escolheu um buquê bonito e apropriado. Estava um dia muito lindo, de um céu azul, com o sol brilhando forte naquele início de outubro. Prevendo um dia quente, resolveu que seria melhor aproveitar a frescura da manhã para pôr a cabo a sua empreitada. A floricultura ficava ao lado de uma padaria e muitas pessoas, vendo-a, cumprimentaram-na, desejando-lhe um bom dia. De posse das flores, muito bem preparadas pela dona Tereza, desceu pela Rua Tiradentes e seguiu em direção ao cemitério.
Ao chegar, estacionou o carro bem em frente ao portão principal. Não havia mais ninguém ali naquele momento. Tudo parecia muito tranquilo, num silêncio profundo. A família comprou um espaço para construir o túmulo e contratou alguns pedreiros para edificá-lo. Heloisa caprichou na sua construção, cobrindo-o com mármore. Ficou tão bonito que se destacava, embora ficasse distante da entrada principal. Bem no alto uma foto discreta mostrava o rosto bem desenhado do doutor. Heloisa pôs-se a caminhar rumo ao túmulo da família. Enquanto seguia, observava as sepulturas e lia as lápides contendo mensagens bem curtas sobre a vida daquelas pessoas. Observou que havia sepulturas de gente importante e de gente simples, ricas e pobres, crianças, jovens e adultos. Algumas bem cuidadas, enquanto outras pareciam abandonadas pelos entes não tão queridos assim. Comum a todas, o fato de que poderiam ser bonitas por fora, mas, no seu interior, cadáveres em decomposição, mostrando a fragilidade da vida. Naquele momento percebeu o quanto a morte é forte e invade a vida das pessoas sem avisar e pedir licença. Impõe a elas uma agenda horrível, com muito sofrimento, separações e angústias, coisas estas que nenhum ser humano deseja para sua vida, mas que são empurradas garganta abaixo sem dó nem piedade. Enquanto ponderava nestas coisas, concluía que o cemitério é uma escola que ensina em silêncio.
Mas ao se aproximar do túmulo levou um grande susto. Seus lábios ficaram trêmulos, as pernas bambearam. Esticou um dos braços e se apoiou em um dos cantos. Quem estivesse ali, veria que estava pálida, quase desmaiando. Tudo aconteceu, porque havia três buquês de flores em cima do túmulo. Pelo aspecto de cada conjunto, um era mais antigo, pois as pétalas se soltavam, outro começando a murchar e outro com flores frescas. Por sorte, de repente, apareceu o Sr. Sebastião, coveiro que trabalhava ali já há muitos anos. Vendo o estado em que se encontrava, perguntou se precisava de ajuda. Mas Heloisa respirou fundo e conseguiu se reerguer:
- Tá tudo bem, Sr. Sebastião. Obrigada!
Assim que o coveiro se ausentou, revirou todas as flores na ânsia de encontrar uma pista sobre quem poderia ser. Nada encontrando, jogou todas no lixo, deixou seu buquê bem no centro do túmulo e saiu apressada, enquanto possuía força física e emocional para tal. Em pouco tempo já estava novamente dentro de casa. A presença inesperada daquelas flores atrapalhou sua visita. Planejara passar algum tempo conversando com seu marido, desabafar sua tristeza, chorar os infortúnios a que fora submetida. No entanto, chorava novamente dentro do seu quarto. Já agora, não se derramava em lágrimas somente pela morte do marido, mas também pelas dúvidas e incertezas quanto a fidelidade conjugal, a possibilidade de ter sido enganada durante muitos anos por alguém que mantinha com ela um relacionamento acima de qualquer suspeita. Aflita, tirou apressadamente o celular da bolsa e ligou para Filó:
- Filó será que você pode vir até a minha casa?
- Sim, claro! Aconteceu alguma coisa?
- Quando chegar aqui te conto tudo.
- Está bem. Na hora do recreio dou uma fugidinha e passo aí.
- Muito obrigada, amiga!
Heloisa foi até a cozinha e tomou uma xícara de café. Pisando nas pontas dos pés, foi até o quarto das filhas e observou que ainda estavam dormindo. Fechou a porta com cuidado e saiu.
As imagens dos buquês em cima do túmulo não saíam de sua memória. Seriam
Eram duas horas da tarde de uma quarta-feira chuvosa quando o carro de som saiu anunciando pelas ruas de Palácios:
- Faleceu hoje o Dr. Eurípedes Faria Costa. Seu corpo se encontra em uma das salas do velório “O bom pastor”. A esposa, Sra. Heloisa, e as filhas, Ana Cláudia e Maria Julia, convidam a todos para participarem do seu sepultamento que ocorrerá amanhã às 8:00 no cemitério local. A família enlutada agradece a todos que comparecerem.
Enquanto o carro seguia, tocava uma música tão triste que os vivos quase morriam também. E, dentro de pouco tempo, toda a cidade estava comovida com a morte prematura do doutor, afinal estava com quarenta e cinco anos e no auge da carreira como advogado criminalista.
Aos poucos a sala do velório foi ficando tomada. Parentes, amigos, colegas de profissão, políticos, curiosos e até mesmo alguns cachaceiros de plantão marcaram presença. Era mês de setembro, fazia muito calor, as pessoas se esbarravam umas nas outras num entra e sai constante, buscando uma brecha para ver o defunto. O ambiente estava abafado e meio enjoativo devido à mistura de perfumes, suores e flores, além do cheiro forte das essências que passaram no corpo do falecido.
Sentada e prostrada ao lado do marido, estava a Sra. Heloisa, as filhas e parentes próximos. Em prantos e totalmente inconsoláveis, relutavam em entender, aceitar e se conformarem com a morte de alguém tão querido. Heloisa era diretora da escola municipal "Maria Clementina" e, naturalmente, por tal razão, algumas professoras vieram dar-lhe um abraço, ao tempo em que traziam coroas de flores. E por falar em coroas de flores, elas chegavam em quantidades expressivas do foro local, da OAB, da Câmara Municipal, da Associação Comercial, da Maçonaria etc.
Heloisa estava tão atordoada que não tinha condições de notar a presença de todos. Passavam por lá pessoas de diversas faixas etárias, predominando aquelas de meia idade, inclusive muitos vieram de cidades vizinhas onde o Dr. Eurípedes mantinha vínculo profissional. Ela não conhecia as pessoas que conviveram com o marido, fato que a deixava um tanto insegura, principalmente quando se tratava de mulheres. Como seu esposo era bonito e famoso, às vezes se deparava com um medo inexplicável e, de repente, ver à sua frente uma possível amante ou até mesmo amantes, com o intuito de disputarem o defunto com ela. Lembrou-se que, em outros momentos com as amigas, tinha ouvido algumas histórias e relatos de amantes que apareciam bem na hora do velório, trazendo surpresas desagradáveis tal qual a própria morte. De fato, muitas mulheres já tinham passado por lá. Algumas bonitas e atraentes, outras nem tanto, mas todas se portavam com discrição, escondendo seus rostos debaixo de óculos escuros e olhares vagos. Mas para ela, traziam também um quê de mistério sobre quais seriam os reais motivos para estarem presentes.
Comum a todo velório, principalmente aqueles realizados nas pequenas cidades, há uma grande concentração no seu início, dado o impacto da notícia, mas depois, passado aquele momento de muita contrição, há um esvaziamento, considerando que a maioria tem as obrigações do dia-a-dia. No velório do Dr. Eurípedes não foi diferente. Durante a tarde havia poucas pessoas, as quais se juntavam em pequenas rodas espalhadas pelos cantos e conversavam sobre diferentes assuntos.
Já era bem de tardezinha quando algumas amigas aconselharam Heloisa a se dirigir até sua casa, tomar um bom banho, tomar um café reforçado, descansar um pouco e voltar com energia minimamente suficiente para atravessar a última noite ao lado do marido. No início, ela se mostrou resistente, mas depois foi convencida pelas filhas e pelo próprio cansaço físico e mental. Saiu acompanhada de Filomena, uma amiga desde os tempos em que faziam faculdade em Uberlândia. Quando chegaram em frente ao portão, caiu em prantos ao pensar que seu amado nunca mais entraria em sua casa. Aliás, naquele momento, um turbilhão de fatos, imagens e sons relacionados ao Dr. Eurípedes tomavam conta de todo o seu ser. Gestos, olhares, carinhos compartilhados vinham numa velocidade incrível, não necessariamente em ordem cronológica, rasgando seu coração. Ao entrar, parecia que tudo evidenciava a marca daquele homem com quem convivera durante belos dezoito anos. Filomena pediu para que se sentasse um pouco, foi até a cozinha e lhe trouxe um copo de água. Depois falou-lhe com doçura:
- Amiga, seja forte! Procure ser forte por ti mesma, pelas suas filhas lindas e maravilhosas. Seja forte pelo Eurípedes. Separe uma roupa, tome seu banho e. enquanto isso, vou preparar um chá de erva cidreira bem quentinho.
Ela então se recompôs e foi para o banho. Quando retornaram, eram quase oito horas da noite. Assim que viu suas filhas, ordenou que também fizessem o mesmo, ao que atenderam de pronto. O velório agora estava em outro momento. Novamente o fluxo de pessoas aumentou e ouvia-se somente um burburinho. Por isso o pessoal da funerária reabasteceu as bandejas de pão de queijo, biscoitos e bolachas. Recarregaram também as garrafas de café, chá e leite. Era outro momento até mesmo para Heloisa. As palavras de encorajamento de Filomena, o banho e o chá de erva cidreira lhe caíram muito bem. Ela se mostrava um pouco mais tranquila, já não ficava o tempo todo ao lado do marido e procurava dar atenção a todos. De repente, ouviu-se alguém pedindo para que abrissem espaço. Era o Padre Mário e seus auxiliares que vieram trazer uma palavra de consolo. Quando Heloisa viu aquele homem alto, forte e vestido de batina vindo em sua direção, assustou-se. Pensou até que fosse algum ser celestial já trazendo uma palavra de julgamento para ela e sua família. Fez-se um silêncio. O vigário então puxou algumas ave-marias e alguns padre-nossos. Heloisa se sentiu constrangida, pois não se lembrava quando foi a última vez que estivera dentro da igreja. Afirmava-se católica de nascimento, fora à igreja de livre e espontânea vontade quando se casou. Nas outras vezes em que lá esteve, fora conduzida pelos pais no batismo e na primeira comunhão. Terminadas as rezas, o padre leu uma passagem do evangelho, dirigiu uma palavra aos familiares e saiu.
Capítulo 2
Heloisa resolveu tirar licença-prêmio para se recuperar do luto, dar maior atenção às filhas, cuidar do inventário, reorganizar a vida. Com relação ao inventário, não teve com que se preocupar, o Dr. Carlos Eduardo Mendonça, amigo do Dr. Eurípedes, com quem trabalhara durante muitos anos, prontificou-se a cuidar desta parte tão nevrálgica a toda família enlutada. Com relação às filhas, sentiram muito a morte do pai. E era óbvio que assim o fosse. Adolescentes, às vésperas de entrar para a faculdade, a figura paterna era essencial, dando carinho, conselhos, educação e apoio financeiro, condições básicas para uma vida saudável. As duas eram gêmeas, mas tinham comportamentos diferentes. Ana Cláudia era extrovertida, falava bastante, era muito carinhosa e muito emotiva, chorava fácil, fácil. Era mais apegada ao pai. Trocavam mensagens diariamente e, quando ele chegava em casa, o abraçava e o cobria de beijos. Por isso Heloisa lhe dispensou muito carinho e atenção. Já Maria Júlia era introspectiva, mais na sua, não gostava de se expor publicamente, tinha poucos amigos, era mais apegada à mãe. Identificava-se com ela inclusive na vocação, gostava de pedagogia e pretendia seguir a carreira de educadora. Certamente sentia muito, tanto quanto Ana Claudia, no entanto, seu jeito reservado dava à sua mãe a sensação de que era mais forte que sua irmã.
Heloisa se desdobrava para cuidar de tudo à sua volta. Tentava ser forte, mas às vezes tinha os momentos de recaída e se achava chorando pelos cantos da casa. As estratégias adotadas para se reerguer do luto não funcionavam. Frequentemente se via olhando as fotografias, abraçada às roupas do marido, revendo vídeos que fizeram juntos quando viajaram ao exterior, até coisas simples e pequenas adquiriam valores nunca antes notados. Já era noite, ela estava sentada em sua cama e observava o álbum de casamento. A porta estava entreaberta, Maria Júlia se aproximou e perguntou se poderia entrar. Sua mãe fez sinal que sim balançando a cabeça vagarosamente. Sentou-se ao seu lado e abraçou-a carinhosamente.
- Mãe, não seria melhor a senhora sair, viajar um pouco. Fica enfiada dentro desta casa olhando e acariciando tudo que lembra o pai, penso que é pior.
- Talvez você tenha razão, mas só de pensar em sair, afastar de tudo que me leve ao passado, ressoa como traição, ingratidão ao Eurípedes e ao meu coração.
- Não, não pense assim! O papai estará sempre em nossos corações. Tudo o que vivemos juntos, tudo o que ele fez por nós, tudo o que nos ensinou não morrerá jamais!
Ela se acalmou. Maria Júlia fez-lhe uma proposta:
- Mãe! Vamos combinar o seguinte: A senhora vai dormir em nosso quarto durante alguns dias. Assim ficaremos juntas dando força uma pra outra.
- Está bem. Vou dormir com vocês esta noite.
No dia seguinte, bem cedinho, Heloisa resolveu visitar o túmulo do marido. Então, discretamente tirou o carro da garagem e saiu apressada. Foi até a floricultura mais popular da cidade e escolheu um buquê bonito e apropriado. Estava um dia muito lindo, de um céu azul, com o sol brilhando forte naquele início de outubro. Prevendo um dia quente, resolveu que seria melhor aproveitar a frescura da manhã para pôr a cabo a sua empreitada. A floricultura ficava ao lado de uma padaria e muitas pessoas, vendo-a, cumprimentaram-na, desejando-lhe um bom dia. De posse das flores, muito bem preparadas pela dona Tereza, desceu pela Rua Tiradentes e seguiu em direção ao cemitério.
Ao chegar, estacionou o carro bem em frente ao portão principal. Não havia mais ninguém ali naquele momento. Tudo parecia muito tranquilo, num silêncio profundo. A família comprou um espaço para construir o túmulo e contratou alguns pedreiros para edificá-lo. Heloisa caprichou na sua construção, cobrindo-o com mármore. Ficou tão bonito que se destacava, embora ficasse distante da entrada principal. Bem no alto uma foto discreta mostrava o rosto bem desenhado do doutor. Heloisa pôs-se a caminhar rumo ao túmulo da família. Enquanto seguia, observava as sepulturas e lia as lápides contendo mensagens bem curtas sobre a vida daquelas pessoas. Observou que havia sepulturas de gente importante e de gente simples, ricas e pobres, crianças, jovens e adultos. Algumas bem cuidadas, enquanto outras pareciam abandonadas pelos entes não tão queridos assim. Comum a todas, o fato de que poderiam ser bonitas por fora, mas, no seu interior, cadáveres em decomposição, mostrando a fragilidade da vida. Naquele momento percebeu o quanto a morte é forte e invade a vida das pessoas sem avisar e pedir licença. Impõe a elas uma agenda horrível, com muito sofrimento, separações e angústias, coisas estas que nenhum ser humano deseja para sua vida, mas que são empurradas garganta abaixo sem dó nem piedade. Enquanto ponderava nestas coisas, concluía que o cemitério é uma escola que ensina em silêncio.
Mas ao se aproximar do túmulo levou um grande susto. Seus lábios ficaram trêmulos, as pernas bambearam. Esticou um dos braços e se apoiou em um dos cantos. Quem estivesse ali, veria que estava pálida, quase desmaiando. Tudo aconteceu, porque havia três buquês de flores em cima do túmulo. Pelo aspecto de cada conjunto, um era mais antigo, pois as pétalas se soltavam, outro começando a murchar e outro com flores frescas. Por sorte, de repente, apareceu o Sr. Sebastião, coveiro que trabalhava ali já há muitos anos. Vendo o estado em que se encontrava, perguntou se precisava de ajuda. Mas Heloisa respirou fundo e conseguiu se reerguer:
- Tá tudo bem, Sr. Sebastião. Obrigada!
Assim que o coveiro se ausentou, revirou todas as flores na ânsia de encontrar uma pista sobre quem poderia ser. Nada encontrando, jogou todas no lixo, deixou seu buquê bem no centro do túmulo e saiu apressada, enquanto possuía força física e emocional para tal. Em pouco tempo já estava novamente dentro de casa. A presença inesperada daquelas flores atrapalhou sua visita. Planejara passar algum tempo conversando com seu marido, desabafar sua tristeza, chorar os infortúnios a que fora submetida. No entanto, chorava novamente dentro do seu quarto. Já agora, não se derramava em lágrimas somente pela morte do marido, mas também pelas dúvidas e incertezas quanto a fidelidade conjugal, a possibilidade de ter sido enganada durante muitos anos por alguém que mantinha com ela um relacionamento acima de qualquer suspeita. Aflita, tirou apressadamente o celular da bolsa e ligou para Filó:
- Filó será que você pode vir até a minha casa?
- Sim, claro! Aconteceu alguma coisa?
- Quando chegar aqui te conto tudo.
- Está bem. Na hora do recreio dou uma fugidinha e passo aí.
- Muito obrigada, amiga!
Heloisa foi até a cozinha e tomou uma xícara de café. Pisando nas pontas dos pés, foi até o quarto das filhas e observou que ainda estavam dormindo. Fechou a porta com cuidado e saiu.
As imagens dos buquês em cima do túmulo não saíam de sua memória. Seriam
de uma amante? Uma admiradora secreta? Perguntas inevitáveis que vinham à sua mente e estas levavam a outras, numa tortura que parecia não ter fim. Estava inquieta, caminhando pela casa toda, ansiosa pela chegada da Filó. Só ficou aliviada quando ouviu a campainha.
- Heloisa, o que aconteceu? Fiquei preocupada!
- Preocupada estou eu, depois que vi três buquês de flores em cima do túmulo do Eurípedes.
- Você esteve lá hoje?
- Sim, estive. Ontem minhas filhas me pediram pra sair de casa, julgavam ser melhor.
Filomena balançou a cabeça:
- Tá bom. Sair desta casa e ir até o cemitério? Que diferença faz?
- Pois fui. Achei que fosse me fazer bem, mas realmente me fez muito mal. Pensei que ia morrer quando vi aquelas flores. Estou muito chateada, não sei se quem está sepultado lá era realmente meu marido. Acho que já não sei nem mesmo quem sou também.
- Calma! Não vá tirar conclusões precipitadas.
Heloisa se desabou em lágrimas e soluçava sem parar.
- Ei, pare com isso, Helô! Não, não chore!
- Vou ao cemitério e encontro três buquês de flores. Você acha que estou exagerando? Três buquês! Hoje é o quarto dia que o Eurípedes foi sepultado. Significa que no dia seguinte já havia um lá, ontem já havia outro e agora de manhã encontrei outro com flores frescas. Meu Deus, o que eu fiz para merecer tudo isso?
- Helô, pare com isso, por favor! De repente pode ser apenas uma admiradora ou uma ex-colega de escola. Pode até ser um amigo, ou pode ser até mesmo um cliente demonstrando um gesto de gratidão.
- Não penso assim. Um simples admirador ou admiradora não iria tão rápido visitar o túmulo do Eurípedes.
- Mas o que você ganha levantando estas indagações? Talvez seja melhor deixar pra lá. Poderá se machucar. Pense bem! Isso poderá trazer consequências negativas para suas filhas também. Depois, vivemos outros tempos, as pessoas são
- Heloisa, o que aconteceu? Fiquei preocupada!
- Preocupada estou eu, depois que vi três buquês de flores em cima do túmulo do Eurípedes.
- Você esteve lá hoje?
- Sim, estive. Ontem minhas filhas me pediram pra sair de casa, julgavam ser melhor.
Filomena balançou a cabeça:
- Tá bom. Sair desta casa e ir até o cemitério? Que diferença faz?
- Pois fui. Achei que fosse me fazer bem, mas realmente me fez muito mal. Pensei que ia morrer quando vi aquelas flores. Estou muito chateada, não sei se quem está sepultado lá era realmente meu marido. Acho que já não sei nem mesmo quem sou também.
- Calma! Não vá tirar conclusões precipitadas.
Heloisa se desabou em lágrimas e soluçava sem parar.
- Ei, pare com isso, Helô! Não, não chore!
- Vou ao cemitério e encontro três buquês de flores. Você acha que estou exagerando? Três buquês! Hoje é o quarto dia que o Eurípedes foi sepultado. Significa que no dia seguinte já havia um lá, ontem já havia outro e agora de manhã encontrei outro com flores frescas. Meu Deus, o que eu fiz para merecer tudo isso?
- Helô, pare com isso, por favor! De repente pode ser apenas uma admiradora ou uma ex-colega de escola. Pode até ser um amigo, ou pode ser até mesmo um cliente demonstrando um gesto de gratidão.
- Não penso assim. Um simples admirador ou admiradora não iria tão rápido visitar o túmulo do Eurípedes.
- Mas o que você ganha levantando estas indagações? Talvez seja melhor deixar pra lá. Poderá se machucar. Pense bem! Isso poderá trazer consequências negativas para suas filhas também. Depois, vivemos outros tempos, as pessoas são
mais liberais, muitos não pensam no adultério como coisa grave, inclusive deixou de ser considerado crime. E você sabe também como são os homens... Adoram pular uma cerca.
- Sei, sim. Hoje em dia simplesmente arrancam a cerca. Sei também como são as mulheres, não fazem cerimônia nenhuma para roubar o marido das outras. E também estou pouco me lixando pelo fato de que muitos já não veem o adultério como algo grave. O que importa é o que eu sinto, o que eu penso. Ninguém consegue imaginar a dor que estou sentindo neste momento!
Filó se deu por vencida em sua argumentação:
- Realmente você está levando tudo a sério. O que pretende fazer?
- Vou investigar e descobrir se meu marido tinha uma amante e quem era ela.
- Está bem, Heloisa. Você tem todo o direito de esclarecer esta história. Mas posso te dar um conselho?
- Claro!
- Não fique sofrendo por conta disso. Você foi fiel ao seu marido não foi? Então não deve nada a ninguém. Investigue, descubra tudo, mas não sofra por erros de outros. Depois você ainda é jovem e bonita. Tem toda uma vida pela frente!
Heloisa respirou fundo. Aproximou-se, segurou forte nas mãos de Filó e falou:
- Vou tentar atender aos seus conselhos. Muito obrigada, amiga!
- Agora preciso voltar para o trabalho. Você me promete que ficará bem?
- Tudo bem. Pode ir e obrigada por ter vindo.
- Então eu vou, mas, se precisar, pode me chamar que virei com muito prazer!
Mas assim que Filó saiu, desabou a chorar. Chorou tão alto que suas filhas acordaram e vieram lhe consolar. Abraçadas, acabaram em prantos, numa cena que dava dó. Naquele dia, passou a tarde toda na cama, amuada, sem ânimo até mesmo para se alimentar.
Heloisa entendeu que seria melhor não contar para as filhas sobre as flores encontradas no túmulo do marido, ao menos por enquanto. Assim, carregava apenas consigo as dúvidas sobre o comportamento dele. Se bem que, àquela altura dos acontecimentos, pôs-se a pensar se teria dado algum motivo para que ele ficasse chateado e fosse buscar consolo em outros braços. A pergunta de Filó: “você foi fiel ao
- Sei, sim. Hoje em dia simplesmente arrancam a cerca. Sei também como são as mulheres, não fazem cerimônia nenhuma para roubar o marido das outras. E também estou pouco me lixando pelo fato de que muitos já não veem o adultério como algo grave. O que importa é o que eu sinto, o que eu penso. Ninguém consegue imaginar a dor que estou sentindo neste momento!
Filó se deu por vencida em sua argumentação:
- Realmente você está levando tudo a sério. O que pretende fazer?
- Vou investigar e descobrir se meu marido tinha uma amante e quem era ela.
- Está bem, Heloisa. Você tem todo o direito de esclarecer esta história. Mas posso te dar um conselho?
- Claro!
- Não fique sofrendo por conta disso. Você foi fiel ao seu marido não foi? Então não deve nada a ninguém. Investigue, descubra tudo, mas não sofra por erros de outros. Depois você ainda é jovem e bonita. Tem toda uma vida pela frente!
Heloisa respirou fundo. Aproximou-se, segurou forte nas mãos de Filó e falou:
- Vou tentar atender aos seus conselhos. Muito obrigada, amiga!
- Agora preciso voltar para o trabalho. Você me promete que ficará bem?
- Tudo bem. Pode ir e obrigada por ter vindo.
- Então eu vou, mas, se precisar, pode me chamar que virei com muito prazer!
Mas assim que Filó saiu, desabou a chorar. Chorou tão alto que suas filhas acordaram e vieram lhe consolar. Abraçadas, acabaram em prantos, numa cena que dava dó. Naquele dia, passou a tarde toda na cama, amuada, sem ânimo até mesmo para se alimentar.
Heloisa entendeu que seria melhor não contar para as filhas sobre as flores encontradas no túmulo do marido, ao menos por enquanto. Assim, carregava apenas consigo as dúvidas sobre o comportamento dele. Se bem que, àquela altura dos acontecimentos, pôs-se a pensar se teria dado algum motivo para que ele ficasse chateado e fosse buscar consolo em outros braços. A pergunta de Filó: “você foi fiel ao
seu marido, não foi?”, mexeu muito com ela. Teria sido ao longo dos anos uma amante apaixonada, ou simplesmente uma boa mãe, uma boa dona de casa ou ainda somente uma excelente diretora de escola? Não seria melhor recuar e fechar completamente a sepultura do marido?
Capítulo 3
No dia seguinte, assim que as filhas saíram com as amigas, fez algumas recomendações à sua empregada e saiu também. Foi até o cemitério novamente. Resoluta, caminhava apressadamente em direção ao túmulo. Quando chegou, encontrou um envelope embaixo do vaso de flores que havia deixado no dia anterior. Ficou curiosa sobre o que teria dentro. E por instantes fraquejou, mas respirou fundo, criou coragem e enfrentou a situação. Já agora o desejo de descobrir a verdade sobre o passado do marido sobrepunha suas emoções e sentimentos. Pegou o envelope e o abriu com força, rasgando em um dos lados. Era uma carta. Estava escrita à mão, dizia quanto o amava, agradecia pelos muitos momentos que passaram juntos e clamava da saudade insuportável. Heloisa dobrou a carta, colocou-a dentro do envelope, guardou-a em sua bolsa e saiu. Sem querer, exclamou em voz alta:
- A dor é forte quando se sabe que foi traída, mas é pior quando tal traição ainda é uma dúvida.
Ao chegar em casa, entrou logo no seu quarto, fechou a porta rapidamente e tirou a carta da bolsa. Leu-a novamente uma, duas, três vezes, analisava-a minuciosamente não somente como vítima, mas também como um detetive em busca de um criminoso. Tudo foi observado, desde a grafia, tamanho e inclinação das letras, cor e tamanho do papel. Fez uma varredura completa. Depois de um tempo de estudo, dobrou-a novamente e a colocou dentro de uma gaveta trancada a sete chaves.
Após tomar um banho, resolveu buscar as filhas que estavam saindo da escola. No caminho de volta, passou no banco para ver como estavam as finanças, passou também na escola onde trabalhava para assinar uns papéis relativos ao seu afastamento. Depois voltaram para casa. Maria Júlia observou atentamente sua mãe e falou:
- A senhora hoje parece mais animada ou é impressão minha?
- Digamos que estou um pouco mais animada. É que as vezes a gente se comporta como se fosse uma máquina multifuncional. Dependendo da situação você troca algumas peças e supre uma determinada necessidade. Às vezes direciono minhas energias para o trabalho, as filhas, a casa, os negócios. E há momentos que volto as atenções para mim mesma, minhas fraquezas, minhas angústias e por aí vai. O dia a dia vai me empurrando.
- Puxa vida! Além de mais disposta, tá inspirada também!
- Deixa disso, sua bobinha. Agora desça que vou dar mais umas voltas.
- Oh! Apoiado! Vá mesmo, fará bem pra senhora.
Assim saiu novamente, passou no supermercado e comprou umas coisinhas, passou também na farmácia para comprar um calmante. Depois estacionou em frente a uma barraca de lanches, desceu, sentou-se em uma cadeira à beira da calçada e aguardava a chegada da Filó. Combinaram de se encontrar para um momento de descontração, comer pastel com guariroba e tomar suco de abacaxi. Logo filó chegou.
- E aí, amiga, com tem passado?
- Um pouco melhor!
- Então, quais são as novidades?
- Nenhuma. Continuo com as mesmas perguntas. Você tem alguma ideia sobre como posso descobrir quem era a amante do Eurípedes?
- Hum! Tenho não. Difícil, hein! Não tem nenhuma pista?
- Tenho quebrado a cabeça, mas ainda continuo na estaca zero.
- Helô, só queria entender uma coisa. Durante esse tempo todo, você não desconfiou de nada?
- Pior que não. Tínhamos uma vida normal. Nosso casamento seguia o padrão da maioria. Você sabe como é, no início há aquela euforia, mas, à medida em que o tempo vai passando, começa a virar uma rotina e a chama do amor perde um pouco de intensidade. Mas nada demais que pudesse levantar suspeita.
- Vamos pensar. Posso te fazer algumas perguntas?
- Pode perguntar o que quiser.
- Uma possível amante seria alguém muito bonita, elegante e, no mínimo, com o mesmo grau de estudos dele, certo?
- É, pode ser.
- Por quanto tempo ele ficava fora?
- Esporadicamente, ficava até quinze dias. Regularmente, saía na segunda para Uberlândia e voltava na sexta-feira à tarde.
- Pois é! Então há uma grande probabilidade dessa sua amante ser de Uberlândia ou de alguma cidade próxima. Ter uma amante aqui em Palácios seria muito complicado...
- É. Você tem razão.
- Caramba! Tá difícil, mas já conseguimos raciocinar na direção correta. Onde ficava quando viajava?
- Na maioria das vezes, no próprio escritório. É uma casa enorme, cheia de salas e muitos móveis. Inclusive tem uma cama de casal. Passamos muitos momentos agradáveis lá. Tinha uma cozinha, banheiro para banho...
- Tá esquentando... Bela, diplomada, certamente não é de Palácios. Ele, bonito, famoso, fica muito tempo fora, tem uma casa montada em Uberlândia...
- Filó, por favor! Percebo um certo sarcasmo em suas palavras. Está me fazendo mal.
- Desculpe, amiga. Estou apenas tentando te ajudar.
- Eu sei, mas é difícil demais da conta.
- Posso continuar?
- Pode, mas veja o que vai dizer, hein!?
- Provavelmente sua amante seja uma advogada que trabalhava com ele. E fizeram do escritório um ninho de amor. Simples assim. Trabalhando juntos, algumas afinidades, um lugar de encontro. Trabalho e namoro se alternavam, sempre ao lado um do outro, sem perda de tempo. Quem os vissem juntos, sempre concluíam que estavam apenas trabalhando.
- Ai, Filó, que horror! Jamais pensei que passaria por esta situação.
- Você já buscou as coisas dele?
- Ainda não. Pra falar a verdade, tinha até me esquecido.
- Então corra até lá que poderá encontrar alguma pista. Como dizem por aí, nenhum crime é perfeito...
Capítulo 4
Transcorridos vinte e oito dias após a morte do Dr. Eurípedes, Heloisa fora chamada a se apresentar perante seu inventariante, o Dr. Carlos Mendonça de Barros, o qual já havia terminado seu trabalho, com os documentos prontos para serem conferidos e homologados perante o cartório. Assim, às 8:00 em ponto estava em frente ao escritório do doutor, localizado na rua Monteiro Lobato, número 85, bem próximo à Praça Das Estações. Entretanto, ao chegar, o escritório ainda estava fechado, obrigando-a a esperar dentro do carro, fato que a deixava muito impaciente, pois a pontualidade era uma qualidade que cultivava. E, após quinze minutos de atraso, a secretária chegou e abriu as portas para o início do expediente.
Heloisa sentiria à vontade ali, não fossem as circunstâncias do momento, pois aquele ambiente lhe era familiar. Foram diversas as vezes em que lá esteve acompanhada do esposo e o aguardava enquanto conversavam sobre as demandas da profissão. Era uma casa antiga, reformada e adaptada para servir de escritório. Apesar de rústica, apresentava um aspecto agradável, com um assoalho de madeira muito bem feito, com juntas secas entre uma tábua e outra e envernizado com um vermelho brilhante. Nas paredes, alguns quadros pendurados, móveis e assentos confortáveis, as janelas de madeira bem grandes e ornamentadas por belas cortinas que desciam de cima a baixo. Não demorou muito e o doutor chegou. Ao vê-la, fitou-a por alguns minutos, estendeu a mão e a cumprimentou com força, dando-lhe em seguida um forte abraço.
- Como tem passado, amiga?
- Um pouco melhor.
- E as meninas, como estão?
- Estão bem, mais conformadas, mas ainda sentem a falta do pai.
- Peço desculpas por não ter te visitado. É tanta coisa para se fazer, muitos compromissos a serem honrados. E a gente não aprende que a vida é breve e esta correria não vai nos levar a lugar algum. Veja você, outro dia nosso amigo Eurípedes estava conosco, cheio de vida e com muitos projetos para o futuro.
- Pois é! A vida é cheia de surpresas. Coisas acontecem em muitas famílias, mas a gente nunca espera que seja com a nossa.
- Mas venha até minha sala que vou te passar todas as informações sobre seu inventário. Fiz tudo conforme pediu, deixando a metade dos bens em seu nome e metade no nome das filhas. Ana Júlia ficou com o apartamento de Caldas Novas, três casas em Palácios, além de quinhentos mil reais aplicados em uma instituição financeira. Maria Clara ficou com o apartamento de Uberlândia, os dois imóveis comerciais daqui, e também quinhentos mil reais aplicados. Pra você ficou a casa onde mora, o escritório daqui de Palácios, o escritório de Uberlândia e 800.000,00 aplicados. A propósito, se for vender o escritório de Uberlândia, tenho uma colega advogada que tem interesse em adquiri-lo.
- Qual é o nome dela?
- Camila.
- Vou pensar no caso. Quanto você acha que vale?
- Segundo o pessoal da imobiliária, uns quatrocentos mil reais.
- No futuro poderemos conversar a respeito. No momento ainda estou sem cabeça para pensar em negócios.
- Tudo bem, tudo tem sua hora, não precisa pressa. Com relação a assinatura do inventário, posso marcar uma data para irmos ao cartório?
- Pode sim. Temos que acabar logo com isso.
De repente, fez-se um silêncio.
- Posso te contar algo sobre o Eurípedes?
- Claro.
- Estou desconfiada que ele tinha uma amante.
- Que isso, Heloisa? De onde tirou esta ideia maluca?
- Você conviveu com ele durante muitos anos, acha que seria capaz de me trair?
- Claro que não! Eu o acompanhei durante muitos anos e nunca vi algo suspeito em sua conduta. Sempre muito comprometido com o trabalho, gostava de tudo muito certo. Sempre fazia referência a você e suas filhas como algo mais precioso de sua vida.
- Está bem. Deve ser coisa da minha cabeça. Vamos deixar pra lá. Amanhã à tarde irei até o escritório do Eurípedes. Quero trazer pra casa as coisas dele, que penso ser quase uma mudança.
- Tudo bem, Heloisa.
- Até mais, Carlos, e obrigada!
Após a saída de Heloisa, o Dr. se mostrou muito preocupado. Levou as mãos à cabeça e andava de um lado para outro. Simplesmente se transformou, parecia outro homem. Abriu a porta, dirigiu-se até a secretária e lhe ordenou que cancelasse todos os compromissos daquele dia.
Heloisa chegou em casa e ligou para o Dr. Carlos, mas ele não atendeu. Então ligou para o escritório e sua secretária afirmou que ele tinha saído e não falou aonde iria.
- Você sabe se aconteceu alguma coisa?
- Não sei de nada. Simplesmente me pediu que cancelasse seus compromissos e saiu apressado.
- Tudo bem. Vou tentar falar com ele.
Assim, Heloisa ligou diversas vezes para o doutor, mas sempre com a mesma resposta: “Telefone desligado no momento ou fora de área”. Então ligou para Filó.
- Filó, preciso que vá agora comigo até Uberlândia. E peça à Dolores para ir junto.
- Mas o que aconteceu?
- No caminho te conto tudo.
Assim, saiu apressada e logo já estava na casa da Filó, que a aguardava em frente ao portão.
- Desculpe-me a pressa, mas temos que chegar ao escritório do Eurípedes o mais rápido possível. Quero desmascarar a amante do meu marido e seu comparsa, o Dr. Carlos Mendonça de Barros.
- Como assim? O que o doutor tem a ver com isto?
- Pois é, na nossa última conversa, você sugeriu a possibilidade de encontrar pistas lá no escritório de Uberlândia, então fui até lá. Desde a morte do meu marido eu não tinha ido ao seu escritório. E lá havia muitos objetos pessoais, roupas, livros. Havia uma cama em uma sala que ele improvisou para dormir por lá quando necessário. Havia também um guarda roupa onde guardava seus ternos. Resolvi ir até lá e descobri um celular onde constava o registro de troca de mensagens com uma advogada por nome de Camila. Encontrei também alguns bilhetes escritos à mão e assinados por ela. Parece que escrever pequenos bilhetes de amor era uma espécie de fetiche, inclusive em alguns havia a marca de batom.
- Mas como você sabe se estes bilhetes são da mesma pessoa?
- Quando fui ao cemitério pela segunda vez, encontrei um bilhete em cima do túmulo e o guardei. Comparei a caligrafia de ambos e vi muitas semelhanças. Depois os levei a um perito que confirmou tratar-se da mesma autora.
- Ah, danadinha! Você foi ao cemitério novamente e não me falou nada hein!? Mas Heloisa, onde entra a participação do Dr. Carlos?
- Acontece que eram amigos. Estudaram juntos e trabalharam juntos por muitos anos. Então ele certamente sabia do relacionamento do Eurípedes com aquela vagabunda... Perdão! Mas as evidências se afloraram depois que estive em seu escritório para tratarmos do inventário. No final de nossa conversa, ele perguntou se tinha interesse em vender o escritório de Uberlândia. Citou o nome de uma advogada, sua amiga, que demonstrou interesse em adquirir o imóvel, cujo nome era Camila. Perguntei a ele quanto valia e ele me falou de um preço muito abaixo do mercado. Outro fato que também me chamou a atenção foi que, ao perguntar se sabia de alguma amante do Eurípedes, o deixou muito assustado. E quando saí da sala ele também saiu logo em seguida.
- Meu Deus! Mas por que estamos indo a Uberlândia com tanta pressa?
- Porque disse a ele que buscaria tudo que era do Eurípedes. Iria esvaziar o lugar para uma reforma. Mas ele não sabia que eu já tinha feito isso. Então pelo seu comportamento após nossa conversa, concluí que ele e a tal Camila certamente virão a Uberlândia também na tentativa de chegar antes de nós e apagar todas as pistas existentes sobre o relacionamento amoroso entre Camila e Eurípedes. A ideia é entrarmos no escritório eu e você e nos escondermos em algum canto. Assim que eles chegarem e entrarem, a Dolores entra logo depois deles e tranca a porta. Estou levando uma microcâmera que gravará tudo sem que percebam. Depois vou desmascará-los.
Capítulo 5
O escritório do Dr. Eurípedes ficava numa rua muito movimentada, bem próximo a um dos foros da cidade, estrategicamente para facilitar o trabalho da advocacia. Era referência na cidade, muitos processos foram ali estudados, investigados e preparados para defesa ou acusação, proporcionando vitórias de batalhas judiciais memoráveis. No entanto, quinze dias após a morte do Dr. Eurípedes, fora totalmente desativado, com alguns processos em andamento transferidos para outros escritórios, outros levados adiante por advogados que passaram a atender em diferentes pontos da cidade.
Logo chegaram. As amigas Filó e Dolores pareciam apreensivas quanto ao desfecho daquela aventura. Mas, mesmo com muito medo, acompanharam Heloisa e entraram. A casa estava vazia, apenas algumas cadeiras quebradas em um canto de uma das salas. Deram uma espiada em todos os cômodos para se certificarem que não havia ninguém. Heloisa então deu as instruções:
- Eu e você, Filó, ficaremos escondidas nesta sala com as portas fechadas e você, Dolores, pode sair e aguardar próximo à porta da rua. Assim que eles entrarem, você entra depois e tranca a porta. Depois deixa comigo.
Não demorou muito para que o Dr. Carlos Eduardo de Mendonça chegasse acompanhado da Dra. Camila. Assim que adentraram, ficaram surpresos com o lugar totalmente vazio.
- Mas que merda é essa, o que tá acontecendo? - Perguntou Camila.
- Não sei! - Respondeu o Dr. Carlos - Ela disse que viria hoje buscar a mudança. Mas ainda não teria dado tempo. Não se faz uma mudança assim tão rápido!
- Ah, não estou gostando nada desta história! Ela está blefando e certamente encontrou algumas pistas sobre o meu envolvimento com o Eurípedes.
- Pois é. Você deu muita bandeira levando flores ao túmulo do Eurípedes. E jogou por terra todo o esforço que fizemos para manter esse relacionamento em segredo. E como se isto não bastasse, ainda teve a coragem de deixar também uma carta? Onde estava com a cabeça?
Camila caminhava de um lado para o outro, apertava seus lindos cabelos cacheados, demonstrando total descontrole sobre aquela situação.
- Ah! Como fui idiota? Mas eu estava muito carente. Como não pude ir ao seu velório me sentia na obrigação de ter um gesto de coragem, um gesto de carinho, um gesto de amor. Meu amor por ele falou mais alto e correr riscos era o mínimo que precisava fazer.
Naquele momento, Heloisa aparece acompanhada pela Filó. Logo depois entra também a Dolores e fecha a porta principal. Os dois olham assustados.
- Heloisa?! O que está fazendo aqui? O que tá acontecendo? – Perguntou o doutor.
- Eu é que pergunto o que os dois estão fazendo aqui. Como advogados certamente sabem que invadir propriedade alheia sem autorização é crime. Eu poderia chamar a polícia. – E, virando-se para Camila falou: - Você deve ser a Dra. Camila, como vai? Certamente já nos conhecemos não é mesmo?
- Não. Não me lembro de termos nos conhecido.
- Ora, doutora, não seja cínica. É claro que nos conhecemos. Pelo menos conheço um pouco de você. E você também conhece um pouco de mim. Acho até que deve conhecer mais de mim que eu de você.
- Não sei do que está falando. Carlos, vamos embora daqui?
- Não! Vocês ficam. Já invadiram minha propriedade, já fizeram um estrago na minha família, agora terão que me escutar.
- Heloisa, tenha calma! Só viemos pegar alguns livros - disse o doutor - Não sabíamos que já tinha feito a mudança. Temos uma chave que foi cedida pelo Eurípedes, somos amigos, jamais invadiria sua propriedade sem seu consentimento.
- Ora, amigos... que amigos? - E virando-se para Camila falou: - Se não sabe como nos conhecemos, então vou lhe explicar: - Conheci um pouco de você quando fui visitar o túmulo do meu marido e dei de cara com as flores que deixou lá. Como se isso não bastasse, fui conhecê-la melhor quando voltei no dia seguinte e encontrei uma carta de amor endereçada a ele. Depois te conheci um pouco mais quando entrei neste escritório e vi muitas fotografias reveladoras e diversas trocas de mensagens em um celular esquecido em uma daquelas gavetas. Descobri também que você tinha o fetiche de escrever bilhetes à mão e os encontrei nos bolsos do paletó do Eurípedes, os quais têm a mesma grafia daquela carta encontrada no cemitério, que depois foram confirmados por um perito como sendo da mesma pessoa, ou seja, você, a amante do meu marido. E fique sabendo que já contratei um advogado para lhe processar pelo crime de danos morais.
Novamente o Dr. Carlos interveio:
- Heloisa, não estou te reconhecendo, de onde tirou esta ideia maluca?
Camila ficou em silêncio e parecia indiferente com a fala de Heloisa. De repente se levantou e caminhava de um lado para o outro:
- Tudo bem, Carlos, já entendi. Ela quer esclarecer esta situação, tudo bem, vamos esclarecer então. Agora, sejamos razoáveis. Heloisa peça para suas companheiras saírem. Doutor, pode nos deixar a sós, por favor?
Heloisa acenou para as colegas saírem. Camila então começou:
- Realmente eu e Eurípedes tivemos um caso. Isto é um fato. Mas parece que você acha que só eu faço parte deste erro, ou seja lá como queira denominá-lo. Você disse que me conheceu e pelo jeito passou a conhecer melhor o seu marido também, não é mesmo? Agora sabe que ele não era nenhum santo. Ah! E pelo jeito passou a conhecer um pouco mais de si mesma, pois mantinha um casamento de aparências, que era insegura e agora descobriu também que ninguém rouba o marido de alguém, mas simplesmente o deixa ir embora. Só que o Eurípedes tem a sua parcela de responsabilidade também. Aliás, foi ele que começou a dar em cima de mim. Foi muito insistente, eu não queria me envolver, mas sua capacidade de convencimento foi muito forte e acabei cedendo. Depois ele tinha muitas qualidades que não são fáceis de se encontrar por aí, coisas estas que você não soube valorizar. Também prometeu que iria se divorciar e ficaria comigo. Mas não cumpriu sua palavra. E eu, me contentei com aquela situação, pois me sentia satisfeita. Eu gostava tanto dele que entre perdê-lo e usufruir de sua companhia, preferia continuar com ele, mesmo sendo um relacionamento a conta gotas.
- Eu sei que o Eurípedes tem a sua parcela de culpa. Não se preocupe, quanto a isto já considero um fato consumado. Quanto ao meu relacionamento com o Eurípedes, isto não lhe diz respeito. Coloque-se no seu lugar, não está em condições de ensinar ninguém, é apenas uma intrusa que atrapalhou nossas vidas. Por mais que queira justificar, nada tirará a sua condição de adultera. Mas você disse naquela época, então quanto tempo durou?
- Uns quinze anos.
- E isto é tudo?
- Não. Tem mais.
- Então conte, por favor. Vamos acabar logo com isso.
- Tivemos um filho também.
Heloisa se estremeceu, mas logo depois já estava refeita do susto.
- Tudo bem, continue.
- Ele disse que queria muito ter um filho. Disse que queria que você desse um filho a ele, mas não quis. Segundo suas palavras, o argumento que você usou é que um terceiro filho estragaria seu corpo e você não queria isso.
- Mentiroso! Além de traidor era também um mentiroso. Ele sabia, todos que me conhecem sabiam também, que tive uma gravidez com muitos problemas, inclusive quase morri devido às complicações. Na época expliquei a ele, o doutor também deixou sua posição de maneira muito clara sobre os riscos de uma nova gravidez.
- Mas não se preocupe. Foi registrado só no meu nome. Eu o criei longe do pai, embora o Eurípedes de vez em quando fosse até nossa casa e conversava muito com ele.
- O Eurípedes inventou algo mais de mim?
- Se era invenção dele eu não sei, mas dizia que você era muito ciumenta. Clamava também que só se preocupava com a escola.
- Realmente eu era ciumenta e com razão. Pois era um mulherengo de primeira. Quanto a pensar só na escola, estamos empatados – ele só pensava na sua carreira de advogado. Enquanto eu cuidei da casa, criei minhas filhas, além de trabalhar fora, ele investiu só na carreira. Investiu tanto que ganhou dinheiro, ficou famoso, vendeu a todos nós a ideia de ser um homem de caráter, e ainda encontrou tempo para se aventurar com uma vagabunda para lhe servir de brinquedo.
- Epa! Calma aí! Agora você me ofendeu. Você me processa por danos morais e eu te processo por calúnia e difamação. Mas acho engraçado você. Fica colocando tudo só sobre seu ponto de vista. Pena que o Eurípedes não esteja aqui para me defender. Porque certamente o faria sem vacilar. Se fui um brinquedo para ele, e você o que foi? Caia na real, Heloisa! Nós duas fomos enganadas. Usufruímos igualmente do bônus e ônus desta relação. Sofremos igualmente seus efeitos colaterais.
- Não concordo de forma alguma com sua argumentação. Eu fui muito mais prejudicada. Sua situação era mais privilegiada que a minha, pois, durante todos estes anos, você sabia da minha condição, mas eu não sabia da sua. Se fossem homens de verdade, teriam assumido isso logo e me dariam condições para reagir. Logo você ficou no lugar de esposa e fui eu quem fiquei sendo a amante. Quem deve ficar de luto é você, pois o meu marido já tinha morrido há muito tempo e eu só não sabia.
- Bem, isto é tudo. Posso ir embora agora?
- Não, ainda não. Quero saber por que vieram para cá correndo assim?
- É que quando disse ao Carlos que estava desconfiada do marido, ele me contou e daí pensei que ainda daria tempo de acabarmos com as pistas que você acabou encontrando aqui. Ele não sabia das flores e nem da carta. Contei a ele no caminho. Na verdade, eu não deveria ter ido ao cemitério, mas estava muito abalada.
- E quanto a compra deste imóvel, por que o doutor pôs um preço tão abaixo do mercado?
- Não sei, não. Mas também desisti de comprá-lo.
Fez-se um silêncio.
- Posso ir embora agora?
- Pode sim. A gente se encontra no tribunal.
Capítulo 6
Heloisa decidiu que estava na hora de contar tudo às suas filhas. Só não sabia como. Temia que levassem um choque, ficassem revoltadas, ou que ficassem deprimidas com o fato de o pai ter tido uma relação extraconjugal. Temia também quando soubessem que tinham um irmão. Mas apesar de todo medo que pairava sobre sua cabeça, havia também um desejo enorme de virar a página, fechar completamente a sepultura do marido e dar um fim àquele momento de muita angústia, muitas perguntas e respostas tão difíceis de serem internalizadas. Com relação a si mesma, já havia entendido que era um direito das filhas e do irmão, continuarem com consideração em relação ao pai, assim como era também um direito de elas aprenderem a cultivar carinho e amizade com o novo irmão, caso assim quisessem. Assim, tão logo suas filhas chegaram em casa, chamou-as para o seu quarto, fechou a porta e falou:
- Minhas filhas queridas, a mamãe precisa contar algo a vocês que é muito difícil, mas que é necessário para o bem de todas nós.
- Meu Deus, mãe, o que foi? A senhora está nos assustando desse jeito!
- Ai, filhas! O que vou contar a vocês é algo que uma mãe nunca quer falar, mas infelizmente eu tenho que dizer.
- Mãe, então fale, não somos mais crianças. Deixe de rodeios e fale logo! - Disse Ana Claudia.
- Está bem, então vou falar. Nestes dias após a morte do Eurípedes, descobri que ele tinha uma amante.
- O que? Uma amante? Não, não é possível. Quem foi que inventou esta história? Imagina, nosso pai ter uma amante, isto é ridículo!
- É, eu sei que é difícil acreditar, mas infelizmente é a mais pura verdade. Eu a conheci hoje, estivemos cara a cara e ela admitiu que manteve um caso com ele durante uns quinze anos.
- Não, não pode ser verdade, a senhora acreditou nesta história? A senhora tem provas?
- Você está duvidando da sua mãe? Tenho muitas provas, tanto que já abri um processo contra ela por danos morais.
- Desculpe-me! Jamais duvidaria da senhora.
- Infelizmente aconteceu e talvez fosse melhor se não soubesse, mas por ironia do destino fui tomar conhecimento só agora após a morte dele.
- Como ficou sabendo? - Perguntou Maria Júlia.
- Ela levou flores ao túmulo do pai de vocês. E também deixou uma carta de amor. Eu estive lá e vi as flores, vi também uma carta. Então peguei a carta e a guardei. E depois, quando fui buscar as coisas do Eurípedes lá no escritório de Uberlândia, encontrei diversos bilhetes nos bolsos de seus paletós. Então levei a um perito que confirmou tudo. O nome dela é Camila, advogada, trabalharam juntos por muitos anos.
- Não, não pode ser! Nosso pai não teria coragem de fazer isso com a gente.
- Filha, ouça por favor! Por mais que a gente não queira, aconteceu. E este é um problema que diz respeito a mim e ao Eurípedes. Tive que contar tudo, pois é um direito de vocês. Só não quero que fiquem sofrendo. Guardem na memória tudo de bom que ele fez. Já ouvimos tanto por aí que não existe ex-pai, não existe ex-mãe, como também não existe ex-irmão ou irmã. Quanto a mim, confesso que fiquei muito chateada, já chorei bastante durante esse tempo, sofri muito ao saber que fui enganada. E, depois que fiquei sabendo de tudo que fez comigo, decidi que não vou chorar mais. Vou erguer a cabeça e levar a vida da melhor maneira possível, desfrutar de tudo de bom que ela pode me oferecer. E tem mais, ele teve um filho com ela, chama-se Gabriel e tem quinze anos.
- Um filho?! – Responderam em coro.
- É isto mesmo, um filho. Vocês têm um meio irmão. É verdade.
- Então temos um irmão!?
- Sim, vocês têm um irmão. Não é o que sempre queriam?
- Ô, mãe, também não é assim. A gente queria um irmão, mas não desse jeito né! - Retrucou Ana Claudia.
- Eu sei, eu sei, desculpem-me. Sei que é difícil para todas nós, mas com o tempo absorveremos tudo isso. E cabe a vocês quererem conhecê-lo e se relacionarem. Agora preciso encerrar este assunto, depois com o tempo ficarão sabendo como tudo aconteceu e suas reais implicações. Tenho mais dois meses de licença-prêmio. Vou viajar nesse período, só não sei ainda para onde e ficarei ausente o máximo possível. Também vou construir outra casa para morar. Quero deixar tudo para trás. Agora tenho que sair para resolver alguns problemas. Fui.
- Ei, espere aí - disse Ana Júlia. - A senhora nos chama e conta tudo isso e vai saindo assim desse jeito? Pensa que somos o que?
- Desculpem-me. Sei que não é fácil assimilar tudo isso, mas vocês duas são guerreiras e terão força para superarem. Mas também, caso haja necessidade, contratei uma psicóloga que ficará à disposição de todos nós. Ok?!
Heloisa sentiu-se aliviada. Agora o próximo passo seria registrar o jovem Gabriel como filho do seu ex-marido, bem como incluí-lo no inventário da família. Com relação ao Dr. Carlos, se desculparam, ela por ter sido cruel no seu julgamento por conta da venda do imóvel de Uberlândia, e ele, por não ter contado nada a ela sobre o caso do seu marido. E Camila realmente estava respondendo ao processo aberto por Heloisa. Embora o adultério não fosse considerado crime, alguns advogados afirmavam sobre a possibilidade do juiz responsável pelo caso aceitar a tese de danos morais.
Capítulo 7
Era dia de finados. Em frente ao cemitério foram montadas diversas barracas de flores. Aos poucos as pessoas foram chegando para visitar as sepulturas dos seus queridos. Mas muitos se aglomeravam em frente ao túmulo do Dr. Eurípedes. Aquela concentração aumentava mais e mais à medida que despertava a curiosidade sobre o que estaria atraindo tanta gente. É que algo inusitado havia ali naquela sepultura de alguém tão famoso. Uma placa metálica bem grande com os dizeres:
“Aqui jaz o corpo do Dr. Eurípedes Faria Costa, um homem de duas faces: 1) Um advogado muito competente e dedicado, que proporcionou a aplicação da justiça na vida de centenas de pessoas, um bom pai que criou os filhos com amor e carinho; 2) Alguém muito especial na minha vida, que um dia me levou até o altar e jurou que me amaria para sempre e seria fiel em toda e qualquer circunstância, mas me traiu e me enganou durante muitos anos, mantendo um relacionamento extraconjugal, do qual vim a saber só após a sua morte. Portanto, encerro hoje o meu luto. Se a outra quiser vir até aqui para chorar e lamentar, fique à vontade. Assinado: Heloisa Faria Costa”.
Um dos presentes fez a seguinte observação:
- Geralmente as pessoas ficam boas depois que morrem, mas com este infeliz aconteceu o contrário.
As reações ao posicionamento explícito de Heloisa foram fortes e abundantes. Alguns reprovando, afirmando que ela não tinha o direito de expor publicamente fatos relacionados a vida privada da família, que aquela atitude soava como um grande desrespeito ao falecido. Outros por sua vez aplaudiam sua coragem e determinação, afirmando tratar-se de exemplo às outras mulheres, para que não se calem diante da infidelidade conjugal. E, dentro de pouco tempo, toda a região estava sabendo do caso e muito se falou a respeito. Mas Heloisa estava distante e alheia a tudo aquilo. Sentada na areia de uma linda praia, lia um livro e sentia-se muito feliz por ter conseguido virar as páginas horríveis de sua vida. Fim.