Conto das terças-feiras – Amor de felídeos

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE. 29 de outubro de 2019

Rosildete adorava felinos. Ela crescera junto a eles, sua mãe criava gatos, geralmente mais de seis. Quando a septuagenária resolveu sair da casa paterna, o fez para também criar seus próprios gatos – os quais amava muito, dizia ela. Para se casar, ainda mocinha, a Rose, como era conhecida pelos mais chegados, procurou um rapaz que também gostasse de gatos. Por ser uma bela moça não encontrou dificuldade em realizar esse desejo. Mário, um belo rapaz, gostava de gatos tanto quanto Rose. Ficaram casados por mais de 40 anos, sempre rodeados dos seus animais de estimação. Eles viveram em uma grande casa, onde tinham condições de acomodar os bichinhos.

A morte repentina de Mário, obrigou Rose a se mudar para um prédio de apartamento, muito menor que sua casa e em um ambiente de hostilidade para com os seus gatinhos. Já na mudança, ela foi obrigada a se desfazer de alguns deles, ficando apenas com cinco. Mesmo assim, os demais moradores não gostavam que no prédio, onde moravam, houvesse tantos animais em um só apartamento. Com o passar do tempo ela passou a contar com apenas Mel, uma linda gata branca, persa, seu xodó.

Um animal tranquilo, dócil, que vivia aos pés de sua dona, ávida por atenção. Com grandes olhos redondos e focinho pequeno e achatado, tinha sido presente de uma amiga, da Pérsia, - atualmente Irã. Seus pelos longos, sedosos e abundantes, obrigava sua dona a cuidar com carinho, diariamente. Quem a deu de presente havia alertado para a fragilidade da Mel, deveria estar sempre em ambiente com temperatura fresca, para que não fosse desenvolvido problemas de pele. Cuidar de Mel era o passatempo de Rose.

Era uma gata inteligente, bastante observadora e comportada, preferia ficar dentro de casa, quietinha, a sair perambulando pela rua. Com isso Rose não se preocupava. O temperamento de Mel permitia-lhe escolher a quem agradar. Obediente, sempre esperava sua dona na porta do apartamento, quando ela saía. Se a volta era demorada, a gatinha a olhava com tristeza, soltando miados de reprovação. Parecia que não gostava de ficar sozinha, nem mesmo afagos mais demorados de sua dona a fazia se acalmar. Rose sentava-se próximo a Mel, esperando que ela se aproximasse. Só depois de alguns minutos ela se chegava, roçando aos pés de sua cuidadora, como pedindo perdão pela grosseria. Rose mostrava o que havia comprado, a refeição da gatinha, que soltava miados baixinhos e suaves, demonstrando alegria. Por muitos anos foram amigas inseparáveis. Mel chegara na casa da agora septuagenária, com dois anos de idade, alcançando os 14 anos, septuagenária, na contagem humana.

Aos 75 anos de idade Rose sofreu um derrame cerebral, tendo que ficar no hospital por três semanas. Ela não tinha mais familiar na cidade, uma amiga, moradora do apartamento ao lado do seu, prontificou-se a cuidar de Mel, já que a gatinha se dava bem com ela. Entretanto, os familiares do apartamento ficaram duas semanas sem dormir direito, Mel passava à noite toda miando e não queria comer. Com o retorno de sua dona, tudo voltou ao normal, passando Mel a ficar mais perto da velha senhora, como se estivesse cuidando de sua cuidadora.

Infelizmente, pelas sequelas resultantes do derrame cerebral, Rosildete, a Rose do apartamento 901, veio a falecer. Ficou dois dias deitada em sua cama, dia e noite, tendo como companhia somente a sua eterna amiga, Mel. Por dois dias ela passou miando baixinho, nem mesmo queria deitar-se na cama de sua dona, com o pressentimento que algo de ruim tinha acontecido.

No terceiro dia, alguém bateu na porta, Mel correu até ela, começou a miar alto, a arranhar a porta, como se quisesse avisar que algo não ia bem com sua dona. Ela percebeu que forçaram a porta, miou mais alto, arranhava a porta, retrocedia e se jogava, com todas as suas forças, contra a maldita porta, quase que desfalecendo ao cair. Alguém do outro lado, desesperado, falou alto: — Mel se afaste da porta, vamos arrombá-la! Como se entendesse o recado, ela se afastou. Três horas depois o corpo de Rose estava sendo levado para o IML, para avaliar a causa mortis, e depois ser sepultada. Os vizinhos mais chegados prestaram a última homenagem para aquela que vivera quase reclusa, a cuidar de sua gatinha, o único ser que ela realmente amara.

Mel, pressentindo que ficara só, subiu no sofá próximo à janela e dali pulou para o espaço desconhecido. Os garotos que brincava na quadra de futebol ouviram um baque e constataram que se tratava do corpo de Mel, a gatinha que todos gostavam. A tristeza se abatera sobre as crianças, que choravam desconsoladas.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 29/10/2019
Reeditado em 29/10/2019
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