Amendoim com Açúcar

Nunca se viu menina tão aprumada para o trabalho, tão jovem e capaz que Dadinha. Daniela dos Anjos o nome dela. Apenas com oito anos já nas ruas vendendo amendoim torradinho, com cobertura de açúcar. Faz chuva ou sol a pino, lá está a franzina garota insistindo em seu negócio todo dia, pela manhã, e, nos finais de semana, até anoitecer. Pela tarde, com muito esforço, dedica-se aos estudos. Caçula de uma prole de dez irmãos, contribui para o sustento da família. Seu Antônio, seu pai, faz bicos como eletricista; Dona Lourdinha, sua mãe, enfrenta, ardorosamente, a profissão de cozinheira num restaurante à beira-mar. Tudo na sua casa se consegue com muito esforço.

Mora na favela do Calabar, localizada na cidade de Salvador, Bahia. Quem conhece o lugar, sabe que nada é muito tranquilo por estas bandas: o tráfico de drogas é o maior problema da comunidade lá situada, comprometendo, seriamente, a vida de muitos adolescentes que se envolvem nesta atividade ilícita. Fora isso, em segundo plano, aparece, destacadamente, a prostituição de menores de idade. E, por fim, aqueles mais afeitos à prática do roubo e do furto. Frutos da miséria humana.

Entretanto, Dadinha sabe o que quer da vida: ser médica. Sempre quando pode brincar com sua única boneca, a quem denominara de Isabel, transforma-a em sua paciente, a qual trata nos momentos em que adoece:

– Isabel, tenha paciência, já vai passar a febre.

– Mas, doi, quase nem sei de mim!

– Tenha calma, filha, e tente dormir. Olha os carneirinhos!

– Um, dois, três – bocejava Isabel –, quatro. Boa noite, mainha!

– Durma com Deus, Bebel.

E lá, no canto de seu quarto, que divide com nove irmãos, fica Dadinha embalando Isabel em seus braços, olhando-a com ternura, acalentando-a numa noite fria de julho. Marcos, um rapazote de 15 anos, irmão dela, fica a observando da parte superior do beliche, rindo de sua ingenuidade, de seu coração fraternal, que muitas vezes já lhe dedicara o afago diante do sofrimento da pobreza presente em suas vidas.

Certa vez, um indivíduo perigoso do Calabar, chamado Rubião, cismara com a cara dele num jogo de pelada, dando-lhe uns bofetes durante a brincadeira. Ele, de sua parte, nada poderia fazer, já que o elemento era membro de uma gangue de assaltantes de carros, e sempre andava armado com uma pistola automática. Chegou em casa, segurou o choro ao avistar Dona Lourdinha e Seu Antônio (era um domingo), mas, passando para quintal, desabara num pranto incontrolável. Dadinha, que lá estava conversando com Tito, seu cão vira-lata de estimação, percebendo a tristeza de Marcos, foi ao seu encontro para confortá-lo:

– Fica assim não, Marcos.

– Dadinha, me deixa, tou com raiva de mim mesmo.

– Quem foi desta vez?

– Desta vez o quê?

– Que te deu uma surra?

– Como você sabe que eu apanhei na rua?

– Ora, Marcos. Você só chega em casa desse jeito quando apanha de alguém. Diz aí, quem foi?

– Vou dizer, mas não conta pra ninguém. Foi o Rubião.

– De novo. Que garoto danado!

– Ainda vou acabar com ele.

– Você vai acabar com o Rubião? Ele se acaba, um dia, com a polícia. Deixa isso pra lá.

– Tem razão, mana. Com a vida que ele leva, o fim dele está próximo. O negócio é ficar longe do campo. Melhor descer pra praia.

Porto da Barra a Itapuã é o itinerário de Dadinha durante os finais de semana. Como todos os dias, acorda pelas cinco horas para ajudar sua mãe a preparar o café, o qual será tomado com pão recheado com ovos. Nem sempre é desta maneira a dieta matinal. Às vezes, todos em sua casa são obrigados a um pingado de café tão somente nas manhãs em que o dinheiro não dá para comprar os pães, a manteiga e ovos. Contudo, durante o fim de semana, como seus irmãos e ela trabalham até tarde nas praias da orla marítima - eles vendendo picolés, óleo para bronzear e limonada; ela, pacotinhos de amendoim – tinham que se alimentar um pouco melhor, já que, durante a labuta, só lancham quando alguém, de bom coração, oferece alguma coisa. Todo o lucro arrecadado por eles era reservado para despesas domésticas. Nada mais.

Dadinha trabalha na companhia de Marcos, com quem se dá muito bem. Não que despreze os outros irmãos, mas ele é o único que se importa com as ideias dela, com as quais sempre concorda, já que se assimilam com as dele. Certa vez, ela queria visitar a Lagoa de Abaeté em noite de lua cheia. Loucura. Mas, persuadiu Marcos para, juntos, realizar seu súbito desejo. Foi num sábado, lá pelas dezenove horas. De mãos dadas chegaram às margens da lagoa, em cujas águas escuras descansava o esplendor do luar. A menina não hesitara em tomar um banho, o que fez, também, o seu irmão. Começaram a brincar até que apareceu uma viatura da polícia, surpreendendo-os. Saíra do veículo um agente conhecido como Nego Damião, que foi ao encontro deles:

– Vocês dois aí, o que fazem neste lugar à noite?

– Somos irmãos. Estamos apenas tomando um banho – respondera Marcos, assustado.

– Não perceberam o perigo que vocês estão passando, sozinhos neste esquisito? Já pra casa os dois! Passa, senão vou levá-los até a Delegacia da Infância e da Juventude, e de lá irão dormir no abrigo para menores delinquentes!

– Ei, moço – retrucou Dadinha – não somos marginais não.

– E quem lhe perguntou alguma coisa, pretinha? Aqui vocês só escutam e obedecem. Bora, pega o beco molecada, já estou ficando zangado!

– Posso dar o último mergulho, seu polícia?

– Menina, não me tira do sério!

– Juro que será bem rápido, lá no meio da lua.

– Onde?

– Ali.

– Não é fundo não. Você pode se afogar.

– Nada. Sei nadar que nem sereia.

– Tá bom! Bem ligeiro, ouviu, sua danadinha?

E lá foi a Daniela, com perícia, mergulhar no meio da lua, desenhada nas águas da lagoa do Abaeté. De longe, Nego Damião admirava a garota corajosa que enfrentara, sozinha, uma viagem ao misterioso satélite da Terra, adentrando em suas crateras, passeando pela sua superfície gelada, sem temer os reclamos de São Jorge. Ela é de Ogum, pensou ele. Sabe o que está fazendo. Após algum tempo, ela encerrara a sua peripécia, dirigindo-se até o policial para agradecer. Nego Damião sorriu para ela, dizendo-lhe que iria levá-los para casa, o que aconteceu sem maiores problemas. Chegaram no Calabar, após terem feito um lanche, no Farol da Barra, pago pelos canas. Acarajé e Coca-Cola. Dona Lourdinha, preocupada com o passar das horas, passou aquele sermão nos dois peraltas.

– Tavam aonde, vocês dois?

– Trabalhando, replicou Marcos.

– E essas roupas molhadas? Tavam vendendo amendoim pra Yemanjá?

– Mãe, fomos até o Abaeté, tomamos banho, os homens nos pegaram lá e nos trouxe até aqui, mas antes pagaram um rango lá no Farol, desabafou Dadinha.

– Não me diga, mocinha? Você e seu irmão foram presos na lagoa do Abaeté? Que maravilha!

– Preso, não, mãe. Nos deram uma carona. Estava tarde.

– Muito bem, se é só isso, passem para o quarto pra dormir agora! E nunca mais vocês me aprontem outra igual a essa, ouviram?

– Ouvimos, mãe, redarguiram cautelosamente.

Marcos tinha o mesmo espírito de aventura de Dadinha. Ficavam horas bolando maluquices no meio da rua. E neste dia não foi diferente.

Estamos num domingo chuvoso, as praias deveriam estar vazias. Mesmo assim, ela e Marcos começaram a trabalhar no Porto da Barra. O movimento estava fraco. Foram para o Farol. E daí seguiram para Amaralina, Pituba, até chegar em Patamares. A chuva passou e o Sol se fez presente. Meio-dia e chegava gente de todos os cantos. As barracas começaram a encher, crianças a se divertirem na areia, fazendo castelos. Futebol, cerveja, samba e banho de mar. Clima ideal para vender bronzeador e amendoim.

Dadinha e Marcos faturaram bem neste dia. Terminaram a labuta pelas cinco da tarde, e decidiram retornar para casa com o apurado. Foi quando, ao passarem pelo Campo Grande, a menina novamente teve a ideia de ir ao parque de diversão lá instalado. Marcos relutara, mas a pequena o convencera de dar uma espiada no movimento. E foram. Carrossel, roda-gigante, algodão-doce, pula-pula, churrasquinho, e gente, muita gente se divertindo naquela noite de domingo. Dadinha, emocionada, flertava com os brinquedos, querendo também participar, diretamente, do clima de festa que se abrigou naquela praça em frente ao Teatro Castro Alves, no qual estava se apresentando Gilberto Gil.

Marcos, preocupado com o passar das horas, alertara sua irmã de que deveriam voltar para casa. Ela nem ligava. Estava envolvida pelo encanto das luzes das máquinas apinhadas de crianças.

– Marcos, eu vou no carrossel!

– Está louca, Dadinha! Com que dinheiro?

– Vou falar com o bilheteiro para me arrumar alguns ingressos...

– E ele vai dar pra você? Fique sonhando minha irmã...

– Ah, quem não arrisca não petisca.

E lá foi a menina com o nariz arrebitado até a bilheteria. Chegando lá, encontrou, coincidentemente, o dono do parque conversando com o funcionário que vendia as entradas para os brinquedos, Valtério, um indivíduo de semblante sereno, um pouco obeso, careca, que andava se apoiando numa bengala. As orientações dele ao bilheteiro tinham sido dadas e, quando estava se retirando, tropeçou numa pedra e caiu no chão. Dadinha, que estava ao seu lado, foi quem o ajudou a se erguer.

– Cuidado, senhor, aqui tem muitos pedregulhos soltos no chão.

– Verdade, menina.

– O senhor está bem. Quer que eu cuide dos seus ferimentos. Olha, quando eu crescer, vou ser médica.

Ele, sensibilizado com as palavras de conforto da frágil guria, aceitara ficar sob os cuidados dela, oportunidade em que iniciaram uma conversa, sentados num banco da praça:

– Mocinha, como é seu nome?

– Bem, meu nome é Daniela, mas sou conhecida como Dadinha.

– Tem quantos anos, querida?

– Oito. Vou fazer nove em dezembro.

– Que bom. Você estuda?

– Sim, trabalho também vendendo amendoim.

– Trabalha e estuda. Que coisa bonita, Dadinha. Eu também comecei muito cedo a ralar. Hoje sou dono de três parques de diversão. Este aqui é meu.

– Não diga. Posso lhe pedir uma coisa, seu...

– Valtério, mas pode me chamar de tio Val.

– O senhor deixa eu ir no carrossel?

– Só se for agora. Quem é o rapaz aí do lado?

– Meu irmão Marcos.

– Então vão os dois brincar em todas as máquinas.

– Jura, tio Val. Viu Marcos, eu não disse que eu ia conseguir.

– Você sempre consegue o que quer, Dadinha, finalizou Marcos, dando um sorriso.

Valtério ficara impressionado com a ternura de Dadinha, com o seu espírito de batalha e, principalmente, com a sua convicção de ser doutora. Percebera, pelos seus trajes, que era muito pobre, e lembrou de si mesmo ainda menino, trabalhando na sucata de seu pai. Tempos difíceis, superados com persistência e dedicação ao labor, já que não pode estudar. Não chegara a casar e não tinha filhos. Sentia-se solitário, embora fosse cercado de sólidas amizades adquiridas durante os seus cinquenta anos de existência. Olhava para a menina, que soltava gargalhadas, enquanto girava na roda-gigante. A alegria estampada na simplicidade de uma garota do Calabar, de família pobre, mas honesta. Morena catita, dos cabelos crespos, do olhar apertado, a doçura era a sua maior característica.

Ao terminar a diversão no parque do tio Val, este se ofereceu para conduzi-la até a moradia dela, juntamente com o Marcos. Lá chegando, sua mãe, Dona Lourdinha, estava lhes esperando na porta da casa, visivelmente irritada.

– Muito bem, moleques, o que foi desta vez? Não me diga que o senhor aí é policial?

– Não, senhora - rebateu Valtério - sou empresário no ramo de diversões. Só vim aqui trazê-los, porque já estava muito tarde.

– Ramo de Diversões? Como assim? Argüiu a mãe desconfiada.

– Parques de diversão.

– Mãe, o tio Val é do bem. Até nos deixou ir nos brinquedos dele.

– Imagino que a senhorita pediu favor ao homem?

– Não Dona Lourdinha, eu, de livre vontade, que permiti.

Valtério notou que a casa de Dadinha era muito antiga e deteriorada. Uma sala, dois cômodos pequenos, cozinha, espremida com banheiro, e, nos fundos, um tímido quintal. Mesa e cadeiras desgastadas, um sofá rasgado, televisão preto e branco, rádio de pilha nas mãos de Seu Antônio. Para lá e para cá, passavam pela sala os irmãos dela. Uma cambada considerável.

A partir daí, comovido com a situação daquela família, decidiu ajudar Dadinha nos estudos, matriculando-a numa escola particular, o Colégio Antônio Vieira. Além disso, passaria a lhe dar uma mesada para compensar o fruto de seu trabalho como vendedora de amendoim, que nunca mais passaria a realizar. Por fim, convidou o pai dela para prestar serviços de manutenção dos brinquedos dos parques de sua propriedade.

A vida melhorou para todos. Dadinha não decepcionara ao tio Val: foi a melhor aluna da classe, terminara o ensino médio com louvor e passara, logo em seguida, no vestibular para o curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Formou-se e foi fazer residência no Hospital das Clínicas, especializando-se em Pediatria. Comprou uma casa confortável para a sua família no bairro de Itapuã, próxima à Lagoa do Abaeté. E, nas noites de lua cheia, caminhava até ela para nadar em suas águas sagradas, que refletiam o sorriso do santo guerreiro que sempre a protegeu, satisfeito com a mulher independente que se tornou Dadinha. Dra. Daniela em alto e bom som. Nego Damião tinha razão. Era filha de Ogum. Um amendoim com açúcar.