OS OLHOS INOCENTES

São Vicente, Cabo Verde, 1956

A noite insuportavelmente quente descera sobre a ilha assim como o céu estrelado e as luzes da cidade a cintilar.

César tinha permanecido calado durante o jantar enquanto a mulher irlandesa e ruiva conversava em inglês com a filha de dez anos e o filho de cinco.A sua segunda família, por sinal.

Nessa noite a sua filha mais velha da sua primeira família aos vinte e nove anos chegava de Lisboa a bordo do Vera Cruz arruinada e derrotada com um marido inapto e uma criança de três anos, seu único filho, a reboque.

Que futuro lhes havia de estar reservado pensou aquele homem curtido que trabalhava de sol a sol no liceu a dar aulas de Inglês e de tarde a co-gerir a velha empresa de família para ser capaz de sustentar duas mulheres, quatro filhas e um filho?O horizonte de mar inóspito e escuro quedou-se enigmático e ele desculpou-se e subiu ao terraço sem antes ter pedido a Judite, a criada de dentro, negra e revoltada por fora que lhe servisse um whisky na mesa do terraço onde ele se dedicava e evadia através de cursos de Parapsicologia por correspondência.

Para Maria Armanda aquele regresso não era auspicioso, era tormentoso e ela a sensata e auto-dominada retraía-se em conjecturas cinzentas.Pensara ela que se casara com um homem rico e entrara num casamento de suposto amor eterno e acabara sem dinheiro e a sofrer, desiludida e gasta.

A criança foi acordada de madrugada,passava das três da manhã, vestida à pressa e ainda meia estremunhada levada para o convés.A família foi descida para um bote onde o primo direito da mãe, um homem louro e de olhos azuis e a mulher, outra portuguesa desterrada que vinha também esperar a sua própria mãe que lhe rendia uma visita prolongada os acolheram afectuosamente.O paquete não podia ancorar mais perto da costa.

A criança com os olhos arregalados gravou tudo.

- Mamã, onde estamos?

- Chegámos, querido.Finalmente.Estes são os nossos primos o João e a Maria do Céu que é filha da Dona Laura, nossa companheira de viagem.

África.Ilhas.O Império em ruínas.A saga de um povo triste e emigrante com um velho beirão à cabeça, o botas, desde o final dos anos vinte.

Levaram-nos para o Grémio para uma ceia.

- Aqui as pessoas estão todas pintadas de preto?

- Quase todas, filho.

- Caíram pela chaminé. – gracejou alguém.

E a criança ficou confusa.

Os primos levaram-nos até à casa onde iam viver.Uma vivenda modesta de dois andares com uma sala de jantar e uma sala de estar no rés-do-chão separadas por um corredor curto que desembocava numa saguão a céu aberto e com uma escada estreita de pedra que levava ao primeiro andar onde com a mesma configuração - um corredor separava o quarto da criança do quarto dos pais e abria para uma varanda com uma vista para o porto do Mindelo.

- Estamos mesmo no fim do mundo.E em cuecas! – disse o pai e a criança não percebeu.

Em sua casa junto à Praia na Matiota, o avô naquele momento degustava a sua bebida on the rocks.A garrafa e o balde de gelo, o copo com uma inscrição dourada em inglês jaziam na mesa enorme e rectangular em que colocara um candeeiro e os papeis do curso sem o mínimo perigo que uma aragem inexistente os fizesse voar nem Deus sabia para onde.

Era o preço que ele se dispunha a pagar, mais um, pelo abandono conjugal de uma mulher neurótica e já considerada, passada do prazo e três filhas, então ainda todas menores.

Resolvera não ir esperá-los e encontrar-se com a filha só no dia seguinte.

O rapazinho de olhos inocentes absorveu aquele mundo e ressentiu a paisagem seca e o pó com alvoroço e uma certa angústia inconsciente.A instabilidade persistia e tornaria a sua infância uma maré de infelicidade e solidão.

Mas as imagens ficaram-lhe na mente para sempre: a cozinheira, a ama Mimi de dezoito anos e com três filhos de homens diferentes, a praia , os banhistas de camisola interior, a pracinha, o cinema do Tuta, as casinhas dispersas, os morros e a atmosfera carregada onde não chovia havia anos.A Baía das Gatas, os tubarões pequenos, as mornas, o vento que soprava ténue e sem forças, o oceano desmedido, a asfixia e o medo.

Passaram-se nove meses e rapidamente os pais quiseram regressar, escreveram, imploraram a todos os amigos e conhecidos que lhes arranjassem trabalho e a mãe decidiu procurar emprego quando voltassem para ajudar o marido.O Avô não contrapôs nenhum argumento:ficou até aliviado por se ver livre de mais um fardo.

Pai e filha reencontravam-se depois de anos de separação e ausências e ela não acedia a cruzar-se com a inglesa que destruira o casamento dos pais.Ficaram muitas palavras suspensas por dizer.

Havia jantares, festas, os homens escapuliam-se uma vez por semana para uma facada matrimonial numa povoação vizinha e liberal onde as nativas dançavam uma coladeira infernal com os seus pares, numa batucada crescente que fazia subir a temperatura até ao impossível e descambava em cópulas no meio do público numa suruba conhecida à boca pequena como “quadros vivos” vindos do tempo da escravatura desavergonhada.

A criança passava muito tempo sozinha ou com a jovem criada que se escapava para ir ter com os mulatos, acordava á noite com pesadelos e fazia desenhos a tinta nos livros espalhados pela casa.Tentava exprimir-se desajeitada mas tudo era em vão.Ia sozinha aos três anos, visitar os tios da mãe que tinham dois filhos adultos que ficavam na cama até ao meio dia, uma prima seráfica que passava o dia recolhida, à espera de engravidar e o levava a ver o seu jardim privado, todo de cimento e com uma grande gaiola onde cantava um pássaro triste como num dos contos de Wilde.

O rapazinho perdia-se, fugia de casa e não sabia bem como nem quando voltar.E a mãe assustada nessas ocasiões fechava-o, de castigo, num quarto escuro.Ele fartou-se e habituou-se aos quartos escuros e um dia, deixou de chorar quando a mãe uma vez mais lhe aplicava o castigo, convencida talvez que era a pedagogia adequada.

2000

Já adulto ele viajou consideravelmente em serviço pelo mundo: Genéve,Londres,Maputo,Praia, Zurique,Bruxelas, Atlanta,Nova Yorque, Varsóvia, Luanda…Houve outros quartos escuros em discotecas e bares que ele mesmo procurou e se afogou numa punição e exorcismo, sempre e metodicamente, numa perseguição violenta ao âmago de si próprio.

E o homem revia o rapazinho, os seus olhos inocentes, as marcas na alma, a memória a transbordar de cenas que mais valiam nunca se terem passado mas que irremediavelmente tinham traçado o seu percurso, a sua vida…quebrado esse fino cristal de inocência e brilho… lições, lutas, perdições necessárias com que se aprende duramente as regras da sobrevivência.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 23/10/2019
Código do texto: T6777425
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