O Retrato
O trem chegava mansinho à estação. Fazia agora a última curva enquanto surgia no ar o som característico do apito. No seu interior, ao canto da janela, com o olhar fixo no movimento das pessoas que se aproximavam para a recepção dos recém chegados, estava o protagonista dessa história. Meia idade, barba grisalha, trazendo ao colo um embrulho, ele perscrutava, com seus olhos verdes esgazeados, um a um, todos os presentes na estação a fim de ver se, entre estes, não se encontrava aquela que prometera lhe esperar e lhe dar as boas-vindas. Suas mãos pálidas, carentes de sol, apertavam ansiosamente o embrulho cujo papel dourado que o envolvia já se via enrugado de tanta pressão; há doze horas ele ali estava insone, esgotado pela ansiedade de chegar logo àquele destino, o que finalmente acontecera. O solavanco da máquina fez suas costas magras se jogarem de encontro ao encosto do banco e, parece que, com este ato ele despertou de sua quase prostração e os pensamentos longínquos o trouxeram de vez à realidade; ele preparou-se para levantar e sair. Já era o último dentro do carro, mas não teve pressa. Recusou as mãos estendidas do chefe da estação para descer os degrau até à plataforma e o fez por ele mesmo, já agora animado e ávido por desembarcar.
Caminhou a passos lentos até um dos bancos e sentou-se para esperar. Mas, sua impaciência e incerteza logo o tiraram dali ao assegurar-se de que ninguém viera ao seu encontro. Atravessou o torniquete com certa dificuldade e ganhou a rua. O asfalto estava molhado ainda da última chuva; nuvens acinzentadas rasgavam o céu de outono, um vento frio e insistente assobiava entre as árvores do caminho. A cidade pequenina e pacata já se refizera da balburdia costumeira que causou a chegada da locomotiva. Todos já se encontravam em seus lares e o homem, lento e cabisbaixo, seguia triste pelo canto da calçada. Mais à frente, virou à direita e deu com o rio. Tomou, com cuidado a pontezinha de madeira e, ao fim desta, dando alguns passos a mais, chegou ao seu destino, a casa. A filha que, da varanda, lhe sorriu, veio célere ao seu encontro.
O avô querido, ao pôr os pés dentro de casa trouxe de imediato a sua volta o bando entusiasmado da criançada, beijando-o, acariciando seus cabelos desgrenhados pela ventania, incontidos que estavam com sua presença depois da longa separação. O sorriso voltara-lhe ao rosto. A saudade que o vinha consumindo dera espaço e chance a um pouquinho de felicidade que fosse. A filha, de longe assistia aquela cena, não conseguindo esconder a lágrima furtiva que escorria na face, também de felicidade por ver um pouco de alegria naquele velho pai. Mas ele, enquanto aceitava e retribuía os beijos e os gestos carinhosos dos netos não arredava, da escada de madeira que levava ao segundo piso da casa, seus olhos faiscantes de ansiedade e indecisão.
- E então, não vai subir?
O velho, diante daquela sugestão repentina, tremeu dos pés à cabeça. Sabia que não tinha saída, que foi com este objetivo que empreendeu tão longa e cansativa jornada. Fingiu não ter ouvido, embora tenham-lhe soado claras e contundentes aquelas palavras. Olhou ao redor para disfarçar, as crianças já o haviam deixado, saciadas pela saudade matada. Tudo era igual, todos o móveis, cada objeto decorativo e utensilio doméstico que ele largara para trás para não ter que conviver com a dor da perda que o consumia. Mas ele, num ato de coragem e curiosidade, respondeu num movimento em direção à escada, àquela pergunta da filha. Os pés vacilavam à medida que ganhavam, lenta e pausadamente, cada degrau carcomido da escura madeira. Sua mão direita, como num gesto apelativo, galgava o corrimão enquanto, no peito, um furor mórbido lhe dominava o espirito. Assim, ele ganhou o patamar. Os olhos brilharam de alegria disfarçada ao notificar que o amor da filha imprimira ali um ar novo, de vida nova em que as lembranças do que se foi só trariam sentimentos puros e positivos, tendo sido suficiente o sofrimento que fora a triste perda.
Se o peito do velho se desandara na antecipação do que o poderia esperar naquele andar, seus sentimentos e angústia não podem ser descritos em simples palavras após a frase seguinte da filha.
- Não tocamos em nada e nada fizemos além da surpresa que deixamos para o senhor. Espero que goste.
Ele sentou-se na cadeira alta e confortável que sempre o acolhera para suas deliciosas leituras. De frente para sua figura inerte e indecisa, a porta do quarto que pertencera ao casal. A fechadura metálica, como a esperar o movimento de abertura que poria diante de si a surpresa que lhe esperava. Mas sua hesitação era de dar dó. Suas mãos tremiam agora ainda mais; seus olhinhos assustados e rogativos pululavam entre a porta e a figura da filha, impassível, no patamar da escada a lhe lançar um olhar meigo e amoroso, mas que a ele parecia impaciente e desafiador. Por isso, num esforço, ele se ergueu e deu dois passos que o lhe levaram até à porta. Perguntou pelas chaves, mesmo tendo a certeza de que estava apenas no trinco como sempre estivera; queria com isto ganhar tempo para refazer o espirito dos seus múltiplos sentimentos àquele instante.
Girou, com toda a pachorra que lhe era admissível, a fechadura metálica; expunha com lentidão o ambiente que não via há meses. Decerto, não havia mudanças. Além da limpeza, que o mantinha asseadíssimo, nada alterava a decoração ao gosto da saudosa esposa. A colcha azul de seda brilhava e rebrilhava, dando frescor ao ambiente e vida ao leito que vira a morte. Do retrato, em tamanho real, recostado ao dossel emanava a aura daquele momento imperdível. Ela sorria e o mirava com seus olhos profundos e cheios de amor e mistério. Foi o suficiente para levá-lo ao desmaio, amparado pela beirada da cama. Sua respiração imperceptível e a palidez no rosto despertaram na mulher o grito de socorro e de ajuda imediata. Uma das mãos pendia imóvel, recostada à tela da magnifica obra como a querer acarinhá-la. Não se sabe o desfecho daquele acontecimento. Mas, se Deus levou o pobre velho ele, por certo, se encontra em bom lugar.
Professor Edgard Santos