QUANDO A ARTE ME MACHUCOU

Novembro de 20... Escola Estadual Professora Lígia Navarro, Pitangui/RN. Tudo leva a crer que será mais um dia normal na minha rotina como professor e nem um evento fora do comum irá modificar essa afirmativa. Mas, a vida tem sua própria dinâmica e nem sempre as coisas ocorrem exatamente do jeito que a gente imagina ou quer. Já eram quase 11 horas da manhã e a aula de artes, ministrada por mim, na turma do 6º B, caminhava para o final. Todos os alunos tinham acabado a tarefa proposta naquele dia, que era fazer um desenho de uma borboleta e depois colorir utilizando canetas esferográficas. Notei que o aluno N.R.A não estava realizando a tarefa, mas tinha os olhos fixos no papel e percebi que sua boca estava fazendo alguns movimentos, como se narrando uma história, porém sem emitir som algum. Foi aí que tive a ideia de me aproximar dele, sem fazer movimentos bruscos para não despertar sua atenção, na tentativa de descobrir por que o que o garoto fazia parecia ter mais importância que minha aula. Quando cheguei bem perto da cadeira que ele estava sentado, nem me percebeu, era como se eu, os outros colegas da sala, a aula, ou mesmo a escola sequer existissem. Para minha surpresa, o garoto estava olhando fixamente para uns desenhos que não reconheci e certamente nenhum outro professor havia pedido para que fossem feitos. Ele não só olhava os desenhos, mas também os movia em uma sequência que, certamente, em seu universo mental, tinha determinado sentido. Para mim, mero observador, era incompreensível a forma como aquela criança trocava os desenhos, páginas por página, como num teatro muito bem orquestrado, onde cada personagem sabia exatamente que movimento deveria realizar em cena. Porém, eu seguia sem entender absolutamente nada. Uma coisa deu para perceber nos desenhos, os mesmos lembravam um cenário de guerra ou mesmo uma cena de tiroteios entre polícia e bandidos, ou entre bandidos e bandidos. Em relação a isso, não há como ser específico, pois foi o que me veio à cabeça sobre os desenhos por haver muitas armas e uma jovem mulher de costas, que parecia carregar em suas mãos uma arma longa. Todo o desenho lembrava uma espécie de caos generalizado, daqueles que a gente vê em filmes de ação, com ambulância, carros de bombeiro, polícia, muita perseguição e mortes.

Quando finalmente N.R.A. se deu conta que eu estava em pé, bem próximo a ele, olhando para o que estava fazendo, sua reação foi de susto, seguida por um pedido de desculpa, e explicou que estava jogando Free Fire. Esse jogo é bem familiar para mim. Não há uma escola que dou aulas, que já não tenha ouvido algum aluno ou aluna, e até colegas professores, dizerem que jogam tal jogo. Eu mesmo nunca joguei, mas sei que meu filho joga e a mãe dele também. Sei que se trata de um jogo de videogame, que é jogado em computador, tablete e aparelhos celulares, mas até aquele momento, nunca tinha visto alguém jogando utilizando desenhos no papel.

Antes que eu pudesse ter qualquer reação sobre o que ocorria, N.R.A me fez algumas indagações para depois contar sua história de vida. As perguntas foram as seguintes: professor, o senhor sabe o que é passar fome? O senhor sabe o que é ser a única criança em toda essa escola que não tem celular ou computador? O senhor sabe o que é não ter o amor de um pai e de uma mãe? Balancei minha cabeça quase que involuntariamente, fazendo sinal que sim, mas fiz uma observação dessas suas perguntas, e disse que a única que não sei o significado é referente ao amor de pai e mãe, posso dizer, em plenos pulmões, que sempre tive. Tentei olhar para o garoto para ver em seus olhos alguma reação diante de minha afirmativa, mas eles pareciam perdidos em um mundo inatingível, presos em algum lugar sombrio dentro dos seus pensamentos. Daí, tive a sensação de que eu e ele tínhamos entrado em um portal dimensional e fomos levados para algum lugar do meu passado e do presente dele, onde só estávamos eu e ele, observando nossas vidas e sentindo nossas dores.

Me vi, acredito que com uns 10 anos de idade, na seguinte cena: minha mãe no caixa de um supermercado comigo. Eu estava chorando. Dava para ver que uma parte significativa das compras, tinham ficado para trás. Acredito que não havia dinheiro suficiente para pagar tudo aquilo. Claro que essa conclusão veio do meu eu de agora, pois naquela dimensão a criança não tinha essa consciência e chorava, por desejar todas aquelas delícias que ficaram para trás no carrinho de compras, tipo: iogurte, chocolates, biscoites e doces. Tudo que passou foi só arroz, cenouras e caldo de galinha. Olhei no rosto de minha mãe do passado e vi que ela estava com uma cara de choro e frustação, certamente por não poder dar para o filho aquilo que ele tanto desejava.

Dentro do meu eu de agora, fui tomado por uma dor descomunal no peito. Cheguei a imaginar que estava tendo um infarto. Pensei o quanto em minha vida passada, quase toda na pobreza absoluta, marcou a personalidade do homem que sou hoje. Pensei o quanto cenas como essa marcaram a vida da minha mãe e o quanto essas cenas ainda hoje marcam mães e filhos por esse mundo a fora. Um gosto de lágrimas, de arroz com cenoura e caldo de galinha dominou todo meu ser. Arroz, caldo de galinha e cenoura era, durante muito tempo, a única refeição que eu e meus irmãos tínhamos. Não havia outra coisa para comer, fosse noite ou dia. Lembrei, também, das vezes que nem isso tínhamos para comer e, chorando, minha mãe pedia para que dormíssemos mais cedo para a fome passar.

Num sobressalto, como por instinto de preservação, fugi da cena do meu passado. Não aguentava mais ver as coisas ruins que vivi na infância. Fui dali transferido, diretamente para o presente do garoto, e a cena foi muito pior que a minha. Num barraco, com paredes feitas de flandres, papelão e coberto por lona, com espaço de uns 6 metros, tendo como móveis apenas uma mesa e quatro cadeiras, vi sentados em cadeiras ao arredor da mesa, um de frente para o outro, o pequeno N.R.A. e sua avó. Ela chorava desesperadamente e falava para o menino que ele só iria voltar a comer na segunda-feira, quando na escola fosse servida a merenda. No meu íntimo, percebi que aquele diálogo, entre avó e neto, se passava no final de semana, só não sei se sábado ou domingo.

Ouvi o garoto dizer: - Vó, mas minha barriga dói muito, não sei se aguento até segundo pela manhã. E a avó disse: - És um garoto muito forte! Melhor, és um homem e logo terás um bom emprego e tirarás a gente dessa situação. Olhei para aqueles dois personagens e percebi que o garoto tentou esboçar um sorriso, como se as palavras da sua avó, de alguma maneira, ascendessem nele a chama da esperança por dias melhores. Mas, como haverá dias melhores num país carregado de desigualdades como o nosso, no qual as pessoas passam fome em pleno século XXI? Alguém me explique como uma criança em idade escolar deve estar pensando em emprego antes de sua formação? Como um menino, que deveria apenas estudar, ler bons livros, soltar pipas, assistir bons filmes, brincar e se divertir, poderia naquele momento, pensar em trabalho? Que mundo é esse? Que país é esse?

Antes que minha mente me explicasse todos os pormenores políticos, históricos, sociológicos e culturais, que são responsáveis por toda essa situação, voltamos para a sala de aula e N.R.A. às suas explicações sobre os desenhos.

Ele começou assim: - Professor, vejo meus amigos jogando Free Fire e tudo que eu queria era jogar também, poder sentir o que eles sentem quando estão jogando, porém, não tenho celular e nenhum deles me deixa jogar nos seus, só me deixam ver eles jogando. O L.L.S até me disse que não sou normal, pois as pessoas pobres que estão na terra, são um castigo de Deus, não deveriam nem existir, quanto mais jogar Free Fire ou se divertir. Acho que ele tem razão professor, o senhor também não acha? Quis dizer algo àquela criança, mas algo que o fizesse modificar aquela ideia que lhe foi implantada por um colega sobre o que é ser pobre, mas as palavras sumiram da minha existência, não havia nada que eu, homem feito e professor formado, com 10 anos de sala de aula, pudesse explicar àquele garoto sobre o que de fato é e gera a pobreza, e que ele não é culpado por isso. Lágrimas escorreram pelo meu rosto, mas me mantive firme ouvindo o resto da narrativo do menino. - Professor, como não tenho condições de jogar e quero me sentir uma pessoa normal e não um pobre, comecei a usar as técnicas de desenhos que o senhor nos ensinou, para reproduzir o jogo quadro a quadro. Lembro que o senhor falou que a arte pode nos fazer viajar para outros mundos, aliás, que ela pode criar outros mundos. Ao fazer esses desenhos, consegui isso com eles, e quando estou jogando, me sinto transportado para o mesmo mundo dos meus amigos, onde posso ser uma pessoa normal e igual a todos eles.

As palavras e a história dessa criança me reconstruíram por dentro, senti toda minha psique se reorganizando, passei imediatamente a me ver na obrigação de ser uma pessoa melhor, um professor melhor, um marido melhor para minha esposa, um amigo melhor, ou seja, um ser humano que consiga intervir na realidade, com objetivo de transforma-la para que as pessoas não sintam, nem passem por isso que esse garoto está passando.

Porra!! Desculpe-me, mas o palavrão se fez necessário. Como é que levamos nossas vidas de classe média sem nos preocuparmos com nossos semelhantes? Como é que a porra da nossa elite política, intelectual e econômica não estão nem aí para milhares de pessoas que têm seus direitos usurpados, inclusive direitos básicos na escala da sobrevivência?

Voltei para os desenhos, para o garoto e lembrei de um grande amigo e desenhista, chamado Lula Borges. Certa vez, ele me explicou sobre os videogames e como são complicados criá-los. Na linguagem das pessoas que fazem os jogos, os desenhos são formados de gráficos. Na linguagem da programação, os desenhos criam as telas realistas e as sequencias dos jogos (fases) e compõem cada parte do jogo. N.R.A., sem nunca ter sequer ouvido falar sobre essa complicada linguagem, de alguma forma, havia recriado seus desenhos através da sua imaginação, e sentia que estava jogando. Mas, é mais do que isso, esse garoto, através dos desenhos, se sentia socialmente incluído.

Meio sem graça, abracei o garoto, chorei muito e disse que ele não precisava pedir desculpas, aliás, elogiei os desenhos, dei parabéns e disse que ele era um garoto formidável, e que não deixasse alguém falar o contrário.O sinal tocou, a aula chegou ao fim e N.R.A correu feliz. É possível que sua felicidade tenha haver com o que eu disse para ele, acredito que ao chegar em casa contará para sua super avó nossa conversa. Me dirigi para a sala dos professores e narrei essa história para o professor Túlio, confessando o quanto aquela arte me machucou.

Claudio Wagner
Enviado por Claudio Wagner em 19/10/2019
Reeditado em 25/10/2019
Código do texto: T6773565
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