Descobrindo A Saudade
Ser pai é deixar o coração amolecer. É despir-se da dureza masculina e mergulhar no rio das sensações e sentimentos de doçura e encanto. É abrir as compotas da alma e deixar o amor fluir em uma via de mão dupla, onde se dá e se recebe.
Há dois anos deixei de ser homem e passei a ser pai. Pai da menina Sarah, fruto de um amor plantado há muitos anos, ainda no auge de minha mocidade. Talvez o rugir dos motores, as voltas dadas pelos ponteiros do relógio, ou a infindável quantidade de notas apontadas na agenda, tenham me impedido de parar e refletir sobre essa mudança incrível que ocorreu em minha vida.
Apenas hoje, enfim, pude sentar-me em uma poltrona, erguer as pernas sobre a mesa, sorver um gole de café, e pensar nessa imensa mudança que ocorre na vida de um homem quando este se torna pai. Seu ser muda. Sua voz, seu jeito de olhar, gesticular, seu jeito de amar, tudo se transforma. A casca é quebrada. Tudo que há de mais secreto, de mais oculto, vem à tona. Você se transforma em um livro aberto. Basta um olhar adocicado, um balbucio manhoso, uma palavra mal formulada, um choro cheio de sentimento e sinceridade. Basta a simples presença daquele ser pequenino correndo pela casa, mexericando nas coisas, tagarelando aos quatro ventos, para que você desça do seu posto de “macho alfa” e se renda aos encantos múltiplos de sua cria.
E se existe algo que lhe faça ter certeza de que sua vida mudou depois da paternidade, isso se chama saudade. Quando ela bateu em minha porta, tive a plena certeza de que ser pai é ter a vida transformada para sempre. É deixar de ser homem em seu sentido denotativo para se tornar humano em sua real essência.
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Assim que o sol apareceu, minha esposa levantou de súbito, separando roupas e objetos necessários para a viagem. Uma mala já estava pronta ao canto do quarto, com material suficiente para se passar um mês de férias junto aos parentes no sul. Como de costume, levantei e fui para a cozinha, preparar o nosso bom e tradicional chimarrão, costumeiro de todas as manhãs. Sarah ainda dormia. Esparramada em nossa cama, repousava serena e frágil, mergulhada em seus sonhos infantis.
Minha esposa e minha filha partiriam para nossa cidade natal, ao sul do país, a passeio. Eu não poderia ir com elas, pois estava trabalhando. Sabia que seria um tempo relativamente curto, mas meu íntimo já dava sinais de que não seria algo tão bem aceitável.
Enquanto tomávamos chimarrão, na sala da nossa casa, entre um diálogo e outro, sentia minha voz falhar e meu rosto aquecer. Eram os primeiros sintomas de algo novo para mim. Ali percebi que minha “casca dura” de homem másculo, sem sentimentos, aquele que nunca chora, iniciava o processo de ruptura.
Sarah apareceu na sala, ainda de chupeta na boca, olhar sonolento, chamando por sua “mamãe”. Minha esposa levantou-se e correu ao seu encontro, tomando-lhe nos braços, trazendo-a para o sofá, onde a cobrimos de beijos e carinho. Cena esta que era comum em nossas manhãs. Um amor de pai, mãe e filha, uníssono, verdadeiro, sólido.
Era para ser mais uma manhã em família, como todas as outras passadas naquela casa. Mas bem sabia eu que em algumas horas, Sarah e minha esposa estariam atravessando o país a bordo de um avião. Sensação esquisita estava sentindo eu naquele instante!
O resto daquela manhã ensolarada passou. Curti cada momento ao lado das minhas companheiras, em especial ao lado da minha filhinha. Fui seu manequim de cabeleireiro, cuidei de suas bonecas, montei castelos com peças de encaixar, embalei-a em seu balanço no quintal da casa, li histórias dos seus livrinhos de papel sólido. Tudo isso embebido pelo amor de pai que eu sentia, mas que naquela manhã parecia estar muito mais forte e ardente em meu peito, se comparado com outras ocasiões.
Mas o implacável passar das horas nos chamou para o presente. Era chegado o momento de partir rumo ao aeroporto. Vi minha esposa arrumando nossa filha, sobre a cama. Roupinha nova, laço no cabelo, perfume adocicado. Sarah estava linda, pronta para viajar. Suspirei e escondi o rosto, para que não vissem as primeiras lágrimas escorrerem. Carreguei a mala no carro, como forma de ocultar minha face quente e ruborizada por algo que até então eu desconhecia.
Já na estrada, a caminho do aeroporto, ouvia atentamente as falas quase que ininterruptas da minha filha, sentadinha em seu assento confortável, no banco de trás do nosso carro. Usando óculos escuros, eu conseguia disfarçar um pouco a vermelhidão dos olhos. Minha esposa a essa altura também já sentia o baque da iminente separação. Escondia o rosto entre as mãos, respondendo aos questionamentos de Sarah, que em sua total inocência, tagarelava sem parar.
No aeroporto o movimento era relativamente grande. Pessoas caminhavam rumo aos check-ins, despachando bagagens e passando pelos procedimentos normais antes de um voo. Pus-me a caminhar com minha filha e a mostrar-lhe as vitrines das lojas de conveniência. Já nessa hora, não conseguia mais controlar as minhas lágrimas. Elas brotavam involuntariamente em meus olhos. Só conseguia apertar Sarah em meu peito e cobri-la de beijos e afagos. O que era isso tudo que estava acontecendo, Deus meu?!
Última chamada para o embarque. Chegara a hora. Minha esposa, já com nossa filha em seu colo, passou pelo fiscal de entrada do portão de embarque. Sarah, a pedido de sua mãe, acenava para mim, sem entender o porquê de eu não estar partindo junto com elas. Ali, deixei-me levar por completo e externei o que estava me consumindo. Chorei como criança. Chorei como um adulto. Chorei como um pai que sente a ausência do filho.
Ao chegar a casa e abrir a porta, senti o forte e frio abraço do vazio. Andar pelos cômodos e não ouvir a voz aguda e cheia de vida de minha filha, fez-me desmoronar ao chão e chorar como nunca. Chorei um choro de emoção. Um choro que veio de dentro da alma, de dentro do coração. Chorei um choro de saudade.
Sim. Saudade é a palavra correta para descrever o que foi que me fez chorar e perceber que minha vida realmente havia mudado após a paternidade. Saudade.
Hoje eu sei o que é ser pai. Sei o que isso significa na vida de um homem. E também aprendi que a confirmação disso tudo vem quando se está longe do seu filho amado.
Ouvi um barulho cortando os céus. Corri para o quintal de casa, olhando fixamente para o alto. Ali passava o avião, rumo ao sul, levando nele minha esposa e minha Sarah. Com o rosto banhado em lágrimas, acenei com as duas mãos erguidas. Tinha certeza que minha filhinha estaria olhando pela janela, acenando com sua mãozinha para o seu “papai” aqui embaixo.