Partimos

Faz alguns dias que não vejo um sorriso em seu rosto. Confesso que não recordo nenhuma atitude que poderia levar a negação do seu levantar de lábios. Na noite passada não consegui descansar por um minuto, fiquei imóvel ao seu lado, de olhos abertos, as vezes subia o olhar sobre seus ombros para ver se você estava dormindo. Nas vezes que te via, quase não retornava de tão paralisante que era sua boca. E assim permaneci por toda a noite, indagando meu subconsciente atrás de um motivo.

No outro dia não cheguei a te ver. Próximo da matina me deixei levar pelo sono e acordei sem você no lado esquerdo da cama. As paranoias já cercavam meus pensamentos, quando minha mão não te sentiu, pulei e revirei toda a casa atrás de você. Na volta, parei de reflexo em frente ao espelho na parede e não me reconheci. Olheiras marcavam meus olhos e os lábios ressecados davam um ar fantasmagórico. Por que te procurava se já sabia onde estava? Uma manhã de sábado rotineira, você trabalhava até a tarde e regressava a meus aconchegantes braços. O sol já começava a dar espaço para a lua quando te vi entrar. Caminhou retilínea até a cozinha e fuçou as gavetas do armário. Aproximei-me um pouco e quase sussurrando falei: “demorou, amor”. Você parou de revirar as coisas, levantou e abriu a geladeira como se não tivesse escutado. Não fazia noção sobre o próximo passo. Deveria perguntar novamente, porém mais alto? Ou sair dali e não implorar por uma mísera atenção?

Toquei seu ombro e ela fechou a geladeira. Virou em minha direção. Finalmente estava me olhando nos olhos. “Estamos sufocados... Bem, eu estou...”. Minha garganta trancou, fazendo-me engolir em seco. Fiquei imobilizado e ela se desfez da minha frente. Fitei o balcão por alguns minutos, ouvindo seus passos na escada e seu choro na metade dela, pus a ouvi-lo como pano de fundo durante aquele longo tempo. Nenhuma atitude racional passava no meu cérebro e o único gesto que tive força de fazer foi apanhar a faca sobre o balcão.

Reiniciei a mente depois que seus passos voltaram da escada. Acelerei ao seu encontro ainda com o utensilio na mão. “preciso passar essa noite fora, tenho que respirar...”. Sem escolha, enfiei a faca próximo a maçaneta, fincando-a. Sua mão parou antes que chegasse à porta. Estávamos a um passo de distância. Quando te vi, não enxerguei amor nos teus olhos, tampouco ódio. Era medo... dentro dos reflexos daquelas bolotas escuras me vi transtornado, um mostro assustador e doentio. Abri a porta involuntariamente e deixei-a fugir daquele selvagem.

Eu à amava? Deitei na grama do quintal, olhando fixamente para a escuridão de uma noite nublada. As gotas começaram a cair depois de algumas horas. Pouco me importei, já estava encharcado de lágrimas há um bom tempo. Queria que fosse água o suficiente ao ponto de me afogar. Retornei para casa, o frio era insuportável. O domingo mais triste que vivi começou debaixo de chuva. Amávamos os dias assim, perfeito pra assistir filmes abraçadinhos. E não voltaríamos mais a viver esses pequenos e deliciosos momentos.

Fiquei torturando minha mente por um período anacrônico. Depois de semanas, numa mesma manhã de domingo te recebi na porta. Não entrou, apenas pegou em minha mão. “Você me ama?”. Não sabia o que lhe responder. Havia pensado por todo aquele tempo e tanto sua ausência, como sua permanência tornaram-se dor. Após o silêncio, ela prosseguiu: “ Me deixa ir...” a frase saiu fraca e embargada de angústia. Balancei a cabeça afirmativamente e beijei seu rosto pela última vez. Ela recuou um pouco e ainda pude sentir o medo daquela noite. Fechei a porta com um sorriso e desmanchei-me em choro do outro lado, acho que lhe coube fazer o mesmo.

Sr Lunático
Enviado por Sr Lunático em 13/10/2019
Reeditado em 13/10/2019
Código do texto: T6768789
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