Artifícios
“Mostre-me um homem que não seja escravo das suas paixões”.
William Shakespeare
A diferença entre um ovo e uma galinha, disse Joziéu, é que o ovo fica onde colocamos. Os amigos olharam para ele desacreditando de que aquela afirmação tivesse qualquer importância. Estavam todos sentados, de cócoras e esparramados ao redor da fogueira.
Joziéu, com sua barba zebrada, remexia as brasas com uma vara verde e longa. Duas amigas que acabavam de chegar do rio traziam um peixe espetado pelas guelras. Basta, falou Joziéu, aqui ninguém come antes de beber.
Enquanto dois amigos se levantavam, tirando a areia dos fundos das calças, Joziéu puxou a caixa térmica e abriu a tampa como quem abre as cortinas de um espetáculo. As moças largaram o peixe sobre um toco e os rapazes retornaram de onde não haviam ido.
Os cinco ao redor da fogueira olhavam para a lua. De vez em quando uma ou outra cabeça se virava para o horizonte noturno onde relâmpagos solitários faiscavam à distância. Estalando a língua Joziéu afirmava que era impossível chover enquanto aquele ovo que ele trouxe permanecesse no galho da árvore próxima.
Nenhum dos quatro amigos se incomodava com os modos excêntricos de Joziéu. Afinal de contas ele era o patrão. E pagava a bebida, dava a carona e fornecia a droga. Eles também não se preocupavam que o patrão tivesse um jeitão de bruxo, desde que tivesse o feitiço do dinheiro no bolso.
Depois da meia-noite e de dois baseados cada um, miravam a lua, rindo da beleza dela. Então, puxaram Joziéu pelo braço e saíram descalços dançando trenzinho em volta da fogueira. Em seguida tiraram as roupas e caíram sentados na areia fria e miúda. Joziéu levantou a velha e folgada bata e com a câmera do celular registrava obscenidades. A lua caminhava célere pelo céu.
A última garrafa de vinho passava de boca em boca. Joziéu remexia o peixe no espeto, parando para olhar as filmagens. De vez em quando estremecia sem sentir frio. O peixe chiando na brasa, o vento fresco do rio e os gemidos que chegavam ao ouvido dele transformava aquela paisagem sublunar em uma réplica do paraíso. Joziéu gozava com os olhos e tinha espasmos de felicidade.
Um dos rapazes uivava para a lua como um lobo apaixonado. As moças riam como quem sente cócegas. Joziéu servia, em pratinhos descartáveis, peixe assado com rodelas de abacaxi. O outro rapaz foi até o carro e trouxe uma coberta de lã e a colocou sobre a areia. Joziéu limpou as mãos na barra da calça e retirou de sob a bata uma pequena esfera branca. Depositou-a no centro da coberta, pediu para que todos se aproximassem, fez uns gestos com as mãos sobre a bola, fechou os olhos e fungou. Quando os abriu novamente, eles estavam vermelhos. E Joziéu parecia assustado.
Uma das moças disse que não acreditava em nada daquilo. A outra apenas sorria. Joziéu estava taciturno, ouvindo o vento, adivinhando certezas. De repente se levantou, olhou fixamente para o galho da árvore próxima e disse que era hora de ir embora. O ovo não estava lá. Os amigos protestaram oh ah e fizeram caras feias, mas Joziéu com um rápido puxão retirou a coberta. Antes mesmo que todos se levantassem ele já jogava a areia fina e fria no que sobrou da fogueira.
Um dos casais quis ficar entre os arbustos da praia. A outra moça puxava a amiga pelo braço. O rapaz se queixava exigindo atenção. Ao volante da kombi Joziéu batucava um samba ansioso. Num momento, um trovão altissonante fez os amigos entrarem ligeiro no veículo. Joziéu balançou a cabeça e sorriu sarcasticamente.
A kombi partiu com seu ronco quente e grave. Após dez minutos de discussão os quatro amigos roncavam mais que o motor da velha kombi. Joziéu dirigia apressado. Ia calculando mentalmente: três garrafas de vinho, dois abacaxis, dez gramas de maconha, um ovo e seis litros de gasolina. Essa despesa eles acabariam pagando. Era fácil fazê-los pagar, pensou Joziéu. Era só aumentar as horas de serviço e reduzir os salários. De vez em quando levá-los para um piquenique.
A kombi seguia ruidosamente em direção à cidade. O vento frio da chuva entrava pelas janelas abertas do veículo enquanto os dois casais dormiam o sono dos bêbados. Joziéu sorria ao pensar nos vídeos que filmou. Uma quentura ardente subiu pelos pés e esparramou-se pelas coxas brancas e cabeludas. Joziéu tremessorria.
No momento seguinte, o sorriso largo e dentuço foi murchando e esfriando na medida em que ele se lembrava - com certeza - que havia se esquecido de fechar na granja as galinhas poedeiras.