Conto das terças-feiras – Álibi convincente
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 8 de outubro de 2019
O sertão nordestino é marcado pelo bioma da caatinga, com predominância de cactos, bromélias, algumas leguminosas e arbustos com galhos retorcidos. Seu solo é pouco profundo, pedregoso e em grande parte, pouco fértil. Seu clima semiárido, temperatura elevada o ano todo e regime de chuvas irregulares, a região sofre com longos períodos de seca.
Nesse ambiente morava a família de seu Mamede, casado com Filomena Mamede e uma prole de oito filhos, duas mulheres e seis homens, quatro menores, dois maiores e gêmeos. Eram nove, o último, por falta de condições para criá-lo, foi doado ainda no hospital, com a condição de o receptor nunca ser identificado.
Seca inclemente castigou por cinco anos a área do seu Mamede, onde costumava plantar mandioca, milho, capim e criar pequenos animais, como ovelhas e carneiros, comprados mediante financiamento em banco estatal e hipoteca do terreno. A seca duradoura acabou com a plantação, obrigando a venda de seu rebanho. Sem renda para pagar o financiamento, o banco tomou a terra da família Mamede.
Sem o leite e a carne para sustentar a família, a falta de trabalho na região, obrigou a todos se refugiarem em diferentes cidades, menos inóspitas. O casal, os filhos menores e as duas moças se bandearam para casas de parentes, os gêmeos resolveram tentar a vida na capital. Sabiam ser difícil, sem qualificação, só sabiam cuidar de roça e animais. Na cidade grande procurariam fazer biscates – serviço simples, de pouca importância – ou pedir esmola, para não morrerem de fome. Mas nem isso deu certo, apelaram para pequenos roubos, de resultados imediatos.
Em um desses assaltos, o irmão mais velho usou de uma faca para intimidar um homem, que respondeu prontamente. Vendo-se quase vencido, o assaltante desferiu vários golpes no seu opositor, que caiu na calçada, quase sem vida. Percebendo o que acontecera, o assaltante fugiu, procurou o outro irmão, confessando o crime. Este o aconselhou a não deixar o local onde se encontrava homiziado, saiu à procura de informações. Descobriu que o homem morto pelo irmão era um perigoso marginal, com mais de vinte assassinatos nas costas, além de ter estuprado dezenas de crianças e adolescentes. Era procurado pela polícia há mais de quinze anos, ninguém sabia o seu paradeiro. Havia até um prêmio pela sua captura.
Voltando para casa, falou para o irmão criminoso que ele deveria se entregar à polícia e contar a seguinte história: quando retornava à sua residência foi abordado por um indivíduo com uma faca na mão, pedindo-lhe todos os seus pertences. Eles brigaram e por ser mais forte que o seu agressor, ao tentar tomar-lhe a maldita faca, o meliante fora ferido. Assustado, saíra correndo, medo de comparsas de seu algoz.
Convencido do relato construído pelo irmão, o mais sensato dos dois, se dirigiram à delegacia do bairro. Pediram para falar com o delegado de plantão. Como àquela hora não havia movimento, eles foram convidados a entrar no gabinete do “chefe” e se sentarem nas duas cadeiras à frente da mesa. O delegado olhou para os irmãos e tomou um susto, havia algo de comum entre os três ali presentes. Os irmãos ficaram desconcertados, pela insistência do olhar daquele homem. O nervosismo tomou conta dos dois. Será que ele já sabia do ocorrido, do assassinato? Já tinha a descrição do criminoso? O irmão assassino ensaiou sair dali correndo, o outro o segurou firme, impedindo-o de qualquer movimento.
Após ouvir a história engendrada pelo irmão, tudo assentado pelo escrivão, que também assentou as perguntas do delegado e respectivas respostas do denunciante, o depoimento foi passado a este último, que assinou atestando a sua veracidade. O escrivão e o delegado também assinaram a peça, para posterior uso no inquérito.
Terminada as providências legais, o escrivão se retirou e o delegado quis saber sobre as duas figuras à sua frente, que o intrigara por demais. De onde eram, nome dos pais, quantos irmãos, por que estavam morando na capital, de que viviam etc. Ao saber que um dos irmãos, o caçula da família, havia sido dado para adoção ainda no hospital, o delegado, que já desconfiava de alguma identidade entre eles, ficou de pé, levantou a camisa e mostrou uma marca por debaixo do braço, do lado esquerdo do corpo, perguntando: vocês já viram esta marca? Sim, os dois responderam, mostrando a mesma marca em seus corpos. O delegado sorriu, aproximou-se dos dois e exclamou: vocês são meus irmãos, só falta confirmar pelo DNA!
O DNA foi confirmado, o procurado facínora foi dado como encontrado morto, vingança? – não quiseram saber. A humanidade estava livre dele, estampavam as manchetes dos jornais e noticiários de rádio e TV.