A Herdeira

Além de ser esbelta, parecia bem da vida e com uma cara cheio de alegria. Sentada numa cadeira do Mercado municipal, espalhava uma sensação de verdadeiro conforto. No entanto, bem lá no fundo, no seu santuário, havia uma gama de problemas que não a faziam transparecer aquilo que a sua linda face limpa e formidável mostrava. Afinal, Mingota era uma actriz excelente. Em inverter a natureza era incrível . Frases como " os olhos revelam aquilo que o coração sente" parecia com ela não acontecer. A maka podia ser grande, era tão orgulhosa que não se abria a ninguém senão ela mesma.

Naquela tardinha, Mingota estava sentada no Mercado a espera do seu amigo e colega Toni. Enquanto não chegava , entrou no seu santuário para manter um diálogo consigo mesma. A maka que mais a incomodava, era a de sua família. Teve início desde o falecimento de kota Titico ,seu pai. Era a cassula da família. Quando moribundo, já a si perguntava o que seria de si. Kota Titico era para ela aquele pilar que assegura a casa. O bater as botas de kota Titico significava solidão, fome, parar com os estudos e discórdia com os irmãos. O maior crime de kota Titico foi de ter batido as botas muito cedo, sem poder ver a Mingota a formar-se e casar-se. No óbito de kota Titico, Mingota era a única que chorava lágrimas de chuvas que sabe a verdade. O resto: lágrimas de crocodilo. No dia do funeral, Mingota até apanhou a mãe e os dois irmãos a sorrirem e a comemorarem do infausto acontecimento. Só pensavam na herança. Também não era muita. Mingota era a única que realmente chorava kota Titico. Lembrava dele a toda hora. Eram sinais de sofrimento para ela, pois os seus irmãos odeiavam-na por ser a crisólita de Titico. A mãe fazia ciúmes. Mãe perturbada. O komba foi onde descobriu as provas da trama que a família perpetrava. Naquela agitação uns a sorrirem e outros com rostos profundos e atónitos como se não acreditassem que o kota Titico tinha mesmo bazado, a mãe e os dois irmãos estavam numa reunião clandestina onde combinavam desconcordando com todas as sentenças do direito consuetudinário ditas pelo sekulo Muenho. A sentença que trouxe canheñgo foi da casa. Tinha de ser arrendada para a mais nova continuar a estudar. A mãe e os irmãos não concordavam, fariam de tudo. Sem escrúpulos podiam até matá-la. Recorrer num bom feiticeiro como o vizinho David. Acusado de ter matado um monte de pessoas quer na rua da casa de Kota Titico como das outras. Ninguém se metia com ele. Nas fofocas do óbito, o que passava de boca em boca era a incerteza do autor da morte de kota Titico. Se era a mãe e os irmãos ou o vizinho David, granda bruxo. Quem quer que seja um bom óbito mwangolé não pode faltar um culpado.

Não parava de pensar nesta maka, parecia era um peso que carregava nas suas costas largas igual as de Cristo. Havia um debate quente no seu santuário sobre o que seria dela após a morte do pai. Deixava-a triste. Mas mesmo assim o seu rosto parecia tão feliz que transmitia alegria a cada pessoa que por aí passava. Pessoas que patavina alguma sabiam da dor que ela sentia. Do debate no seu ámago, seu santuário.

Atrasado, Toni chega. Viu a amiga sentada e passar as pessoas aquilo que não tinha: paz. A hora que Toni chegou era boa, porque Mingota já estava quase a retirar o manto ludibrilhoso que vestia para mostrar o que realmente sentia. Dor. Quase Mingota a deitar lágrimas de chuva, Toni berrou:

-Miiiii!!

Mingota reconheceu a voz e virou-se para ele, saindo do seu santuário e sorriu. Disse:

- Que cavalheiro em. Deixando uma dama a espera este todo tempo.

- pára de tretas, Mi. Sabes que sou mbora bom.

- vamos? - perguntou-lhe a Mingota.

- sim. Vamos Mi.- respondeu-lhe o Toni.

Toni estava ciente de que a sua amiga era muito boa atriz. Mesmo quando triste, parecia sempre feliz. Imaginava o que se passava na cabeça da amiga, da qual também era apaixonado. Mas também sabia que o que quer que aconteça ela não se abrirá a não ser a ela mesma. Não. Não era falta de confiança.

Toni e Mingota caminhavam do Mercado municipal até as mediações do Wiliete onde pegariam um táxi de regresso ao Lobito. Sentindo o clima pesado, Toni resolveu falar da aula que tiveram no simestre passado que havia intrigado toda a turma. Estavam de férias. Era sobre a hostil relação entre os Vandombe e os Vakwisis ou vátwas. Cada grupo intolera/va a presença do outro no seu território, que são contíguos.

- então Mingota, achas normal a relação hostil histórica e actual entre os Vátwa e os Vandombe? - perguntou o Toni.

- Não. - respondeu-lhe a Mingota sem vontade de a boca abrir.

Toni viu que a conversa não iria de vento em poupa. Preferiu calar-se até a paragem. Já não suportava ficar tanto tempo de fecho o bico, queria logo subir ao azul e branco que aparecer embora o lugar seja coxito. Quem não conhece um bom azul e branco da nguimbe? Há sempre uma maka ou uma piada. Toni sabia disso. Por isso estava ávido, na esperança de uma boa maka fazê-la a gargalhar. Tão logo subiram num azul e branco com lugar coxito próprio da nguimbe. Mas não era como ele esperava, pois, não havia nada que podia alegrar a Mingota que parecia profunda e ter cedido a dor que pungia o peito e que o sorriso a tirou do rosto. O carro continuava a zarpar até na piadeira ter subido um senhor bebedo que parecia ser cômico. Mas era uma decepção era insuportável mas não conseguiu animar o azul e branco senão abafá-lo com cheiro de kimbombo e capuca pura. Toni estava passado, não parava de esparatar no coração aquele bebedo insuportável e imprestável. Olha para Mingota. Ficava abalado com o sofrimento da amiga no seu próprio santuário. Passou Piaget, Aeroporto da Catumbela até parar novamente na Estação do Luongo. Desceram umas, subiram outras. Dentre as quais estava um mafioso jovem. Como é comum para aquele kubele a partir da ponte da Catumbela começaria a cobrar. Toni fez as honras. O banco de frente e outros três haviam pagado. No último banco todos pagaram excepto o mafioso. Gerente com ar de simpático pediu:

- é como meu sangue, passa só a kazola ya.

- não te dou pidimo. Eu aqui no pago.

Toni estava a sentir que o azul e branco cheiraria a bilo. Usou este acto grosseiro para dirigir-se a amiga.

- Mi, vai ter bilo aqui.

- estou a ver que sim. - respondeu-lhe a Mingota.

Depois de tanta, tanta, tanta insistência o kubele ficou passado. Quase chegar ao Africano, na famosa ponte, mandou parar o carro.

- Chefe, pára o ruca.

- é quê mais. - respondeu-lhe o motorista.

- o mambo está violento . Não vais dar minha kazola?

- não vou, pidimo. Eu sou mbora do Bona, não se mete só comigo. - respondeu-lhe o jovem mafioso. Próprio de luandesses pensar que os cidadãos das " províncias" como eles dizem, são atrasados. Para eles Angola é Luanda.

As senhoras do carro agastada com o sucedido sugeriam ao kaluanda a pagar. Mesmo assim. Não respeitou o adágio ovimbundo okulu ondaka. Também o jovem estava nem aí para a cultura. Nem a conhece .

- Camone vou tombar contigo não quero parar na kuzu, dá só meu kumbu tó tá visar. Admoestou o gerente.

O gerente pegou o jovem e deu-lhe duas bofetadas estalosas. O jovem não estava a ver nada. O motorista arrastou-lhe fora. De repente os três foram cercados pela população que por aí passava e gritava: biloooo. O gerente pegou-lhe nas mãos apertando com toda força enquanto o motorista revistava. Depois de tanta procura , nada foi encontrado. Deixaram-no e continuaram a viagem. Fez tanta confusão que activou a conversa no azul e branco. Todos passageiros até sorriram. Mingota que estava abalada ante ao sucedido fez os brancos marfins como as núvens em um dia de sol aberto próprio de verão. E a felicidade de Toni era azul como o infinito céu ao vê-la a sorrir. Toni não tinha como agradecer ao acto de rebeldia que nem a do famoso Jacaré Bangão do kaluanda que sozinho caminhava na reta da paciência.

Chegando ao Africano, Mingota teve de continuar a viagem à pé até a casa. Toni. Preocupado, fez as honras.

- acompanho-te.

- Mantonas, vo

(...)

Mana Fató estava com ar pesado,mas feliz. O marido morreu. Cumpriu com uma tradição familiar. Quando se torna rico, o homem tem de morrer. Sucedeu com o kota Titico. Bebia chá de paus todas as manhãs. Pensava era medicinal. Estava a ser dominado e a dar passos para morte. Mana Fató, herdou dos seus ancestrais: Vida de makumbisses. Naquela altura, todas as suas irmãs já haviam matado os seus homens . Apenas ela faltava, porém, agora não sabe se feliz fica ou triste, tinha apenas cumprido com as leis familiares. Lei é lei.

Titico tinha o suficiente, não era de dar inveja. Se tivesse de escolher o herdeiro decerto que seria a Mingota, sua querida filha. Era especial, os paus da mana Fató eram inúteis para com ela, Daí a querela com a mãe. Nesta vida de makumbisses nem todos filhos são kalumbas, há sempre um que não aceita a oferta dos espíritos malígnos . Mingota tinha espírito Ndau, era forte, puxou a mãe de Titico. Makumbisses, não aceita, não cai na tentação.

Desde que o Sebastião atingiu a puberdade que mana Fató tinha dois homens. Seu filho kalumba exercia a função do pai, fazia a mãe sentir-se mulher. Sebastião foi comprado pelos espíritos. Tinha virtudes apreciadas pelos deuses da makumba. Odeiava, era orgulhoso e ganancioso. Vida fácil sempre desejou. Um substituto com estas qualidades podia apenas mitigar a dor dos espíritos de não a terem. Tinha de ser ela a herdeira. A condição da tradição: sempre uma mulher e virgem. Sebastião era uma desordem para essa tradição, os espíritos querem apenas possuir o corpo lindo e virgem da Mingota. Dona Fató tinha dias contados, enquanto não incluir a filha no negócio de estragar lares, não era digna. As irmãs tinham já conseguido suas filhas virgens, mana Fató era a única que não cumpriu. A fúria será contra ela. Não importava se já tinha matado o marido, o que vale é a Mingota, pois, ela já estava velha para os espíritos. A alma de Sebastião já tinha sido acorrentada no mundo dos espíritos. Já não era ele naquele contetor, o conteúdo era outro, a alma do espírito mau.

David afinal não matava os vizinhos, nem foi o responsável da morte de Titico . Era mana Fató com suas duras tradições que comia as pessoas. A má reputação ajudava-o. Todos temiam-no menos mana Fató a verdadeira ngapa. Para os vizinhos Fató era Teresa de Calcutá, uma autêntica altruísta. Viúva solitária que dependia do marido e precisava de ajuda. Lobo debaixo do cordeiro, um verdadeiro jacaré faminto de homens.

Mingota era alma a conquistar enquanto ainda é virgem, ou matar se perder o bem precioso. Neste caso , mana Fató também morrerá. Ela fará tudo para Mingota não conhecer um homem.

..

(...).

Toni fez-se cavalheiro, levou-a até a casa. Tinha chegado sã e salva e um pouco desanuviada com a atitude do infeliz kaluanda. Não sabia que estava mais segura andando por aí prolíxo na rua, apesar dos delinquentes do bairro, que estar em casa. Passados alguns minutos, Toni foi-se embora, ela abriu a porta, ouviu o rimbombiar dos batuques ( tututu,toto) com um som insuportável e medonho. Então procurou constatar os autores: surpresa. Era o seu irmão Eli que tocava enquanto o pau duro de Sebastião penetrava. Era um ritual. Chegou a casa em má hora. Por assistir ao rito, tornava-a cúmplice. E de repente o entra-sai de Sebastião acelerou e a voz da mana Fató virou medonha e as palmas de Eli arderam de fogo. Todos embasbacados: raciocíno lógico, a virgem está no local e os espíritos aceleraram a entronização de tanto entusiasmo.

Mingota que espionava de repente começou a xinguilar ao som do batuque e foi perdendo a consciência, seu corpo caminhava lentamente até ao palco e num piscar a escuridão invadiu os seus olhos e ouviu vozes:

- aceita Mingota, aceita. Serás rainha e rica, terás homens que quiseres, aceita.

E viu seu pai, kota Titico, sendo devorado pelos espíritos maus. Era refém. E viu os esposos das suas tias que caíram nas makumbisses e as primas kalumbas uma com menos de 10 anos era a rainha porque era muito jovem e virgem e era esposa do espírito mau chefe. Enquanto as tias, mães e irmãos cantavam:

"Mingota aceita

Tu foste feita

Para feiticeira seres

É só perceberes."

Era tentador, pensava em aceitar. Era uma espécie de elance matrimonial. Tinha sido prometida pela avó a este espírito, apenas tinha de a mão esticar para as duas almas juntarem-se e tornarem-se estragadores de lar. Mingota levantou o braço, esticou-o quase a alcançar o espírito mau, seu noivo, um braço tocou-a em seu ombro e de repente novamente algo sobre natural aconteceu. A escuridão deu lugar a luz, o som medonho ao cantar dos pássaros, o ódio deu lugar a paz. Era sua avó, mãe de Titico, salvou-a das artimanhas da mãe da mana Fató.

Ao fechar os olhos, espantado com o sol ardente e o ar fresco e o cheiro doce da flora. Mingota ouviu uma voz:

- fuja, fuja, cisola.

Ao abrir os olhos viu que estava em casa ao lado da mãe e do Sebastião que estávam inconsciente. Levantou-se, foi rapidamente para fora assustada correndo e chorando sem saber para onde ir.

Noutro lado todos contra mana Fató. Sua filha viu. É morte. Ela viu. É morte. Não pode viver. É morte. Por ela um fica. É morte. Quem escolhes? Mana Fató não hesitou, escolheu Eli. E de repente acordaram assustados, no entanto, Eli estava morto. Ficou. Morreu. Arrumou todo aparato ritualístico e começou a chorar para avisar a comunidade que mais uma vez a morte visitou sua casa feitos 15 dias da morte de kota Titico. E nos choros acusava-a:

- Mingotéeee, Mingotéee, porquéé weee. Mingiteé é feiticeira, matou mó filho Eli, matou mó filho Eli. Mingotéé.

Fernando Tchacupomba
Enviado por Fernando Tchacupomba em 06/10/2019
Código do texto: T6762723
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