Conto das terças-feiras – O que o medo não faz
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 1º de outubro de 2019
Já passara das duas horas naquela madrugada fria e escura. O senhor Alfredo, debruçado sobre o peitoril da janela de seu quarto, observava o céu sem lua e sem estrelas sobre sua cabeça, que imprimia ar fantasmagórico à rua em frente ao seu apartamento. Nenhuma pessoa ou carro passava por ali, tudo era quieto e sem movimento. Mesmo assim, ele não conseguia dormir, rolara sobre a cama por horas seguidas e o confortante sono não lhe domava o corpo. Era a terceira noite que isso acontecia, deixando-o intrigado, pois tudo corria bem em sua vida. De conduta ilibada e correto no proceder com os negócios e pessoas, nada o afligia. Era um homem simples, assim, não entendia aquela dificuldade em conciliar o sono, tão necessário a um despertar cheio de energia.
Nova tentativa para dormir ele arriscou. Deitou-se, aconchegou-se entre os lençóis e travesseiros e fechou os olhos. Um forte barulho e um grito de desespero ecoaram em seu quarto. Pensou ter vindo da rua, pois dormia com a janela aberta. Pulou da cama e foi verificar o que acontecera. Nada de anormal, tudo como antes.
Incomodado com o que acabara de acontecer, levantou-se e procurou raciocinar sobre o barulho e grito ouvidos. O barulho poderia ter vindo da construção ao lado, mas, o grito, quem o dera? Não havia porteiro em seu edifício, no período noturno, portanto, ninguém para consultar. No restante daquela madrugada ele passou a ouvir um gemido longo e abafado, o que ele atribuiu a alguma criança doente no prédio.
Ele continuou deitado até a hora de ir para o trabalho. Tomou banho, fez café e o sorveu acompanhado de uma fatia de pão com queijo. Não estava sonolento, apesar do que acontecera na madrugada, isso era confortante, deixou escapar esta frase com alegria. Os últimos dias de insônia ainda não tinham afetado seu discernimento. Desceu até a garagem e antes de entrar no carro, pareceu-lhe ter ouvido aquele gemido longo e abafado. Procurou aumentar a sua acuidade auditiva, percebendo que o som vinha da construção ao lado.
Saiu em direção à portaria, pediu que o porteiro o acompanhasse e os dois se dirigiram ao portão, que guarnecia a obra. Chamaram por alguém, mas sem resposta. Os dois resolveram forçar a entrada, o que conseguiram. Cautelosos, seguiram em frente, poderia haver alguém ali escondido. À medida que avançavam, o gemido, antes leve, tornava-se mais audível, dando para localizar a sua origem.
Seu José, o porteiro, soltou um grito assustador e, apontando em direção ao muro do prédio onde morava o senhor Alfredo, exclamou:
— É o filho do Dr. Marcos, morador da cobertura! Ele está todo ensanguentado, acho que quebrou a perna, completou o porteiro.
O senhor Alfredo apressou os passos em direção ao local onde se encontrava estendido o jovem Haroldo, dos seus 19 anos, bom rapaz e tido como exemplo de juventude. Estudioso, educado e brincalhão, diziam as garotas do prédio.
O seu Alfredo foi até a portaria e interfonou para o apartamento do Dr. Marcos, pedindo para ele descer, pois o seu filho sofrera um acidente. Até aquela altura não se sabia se o garoto teria sido deixado ali, por marginais, ou se teria caído do 12º andar – da cobertura. Ou mesmo se teria sido tentativa de suicídio. A polícia, a pedido da família, não foi acionada.
Toda a família veio ver o que acontecera. Seu Alfredo solicitou que trouxessem um colchão para acomodar o garoto e transportá-lo ao hospital, era urgente esse procedimento.
À boca pequena, especulava-se que o jovem Haroldo vinha fazendo uso de drogas, e as comprava de traficantes. A dívida desse negócio já incomodava os traficantes, o garoto não tinha como pagá-la e receava recorrer à família, pois teria recebido ameaça de que, se ele não pagasse, um dos familiares seria morto. Para não passar por essa situação, resolvera dar cabo a própria vida. Felizmente, ao se atirar do 12º andar, o garoto teve sua queda amortecida por um mamoeiro e um monte de areia de construção, colocado providencialmente no local de sua queda. Algumas sequelas ficaram. Nada que comprometesse o seu desenvolvimento intelectual e profissional. Entretanto, até hoje não se sabe o que aconteceu, a família do acidentado jamais revelou, e o mistério ainda permanece insolúvel face o mutismo de todos.